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Por que ler Albert Camus?

por Isabela Nunes
Foto de Maria Cecília Chaves Machado para ilustrar o texto "Por que ler Albert Camus?" de Isabela Nunes.

Isabela Nunes é estudante de Letras na Universidade de São Paulo e colunista da Revista Fina. Nas horas vagas, tenta transformar sua paixão por cinema e literatura em palavras.


Acho que o momento em que mais cheguei perto de entender Albert Camus foi muito antes de conhecê-lo. Eu ainda era bem pequena e imagino que tenha sido em um sábado de manhã. Por algum motivo que já se perdeu em minha memória, eu tinha acordado mais cedo que o normal e estava parada na frente de casa, esperando meus pais juntarem-se a mim e olhando distraidamente para a praça municipal que havia no fim da rua. Não me lembro do que faríamos depois dali, não me lembro do que fizemos antes: me lembro da espera. Da espera e do olhar. 

Para uma criança de nove ou dez anos, há no mundo poucas coisas menos poéticas e dignas de atenção que o quarteirão da própria casa. O asfalto quente, as casas tediosas e sem mistério algum, o passeio sempre um tantinho sujo de poeira — tudo tão completamente esquecível como costuma bem ser aquilo que se vê demais. Mas naquele dia havia algo diferente. Se em mim ou no mundo, não faço ideia, mas, ao correr meus olhos por ela, a imagem cansada se tornou doce: a rua vazia, tão tranquila e pacífica; o vento suave que fazia meu cabelo e as folhas das árvores dançarem; a luz da manhã que iluminava, ao longe, a praça; os raios amarelos que, se esgueirando pelos buracos das sombras dos edifícios e do verde, eram visíveis de uma forma que nenhuma luz não obstruída pode ser visível. O mundo estava completamente iluminado: até as minúsculas partículas de poeira se tornavam douradas sob aquele sol manhoso, matinal. Eu nunca tinha visto nada tão bonito. Com meus olhos pequeninos e inexperientes, eu não compreendia como algo tão ordinário podia conter em si tanto esplendor. 

Imagino que não seja óbvio, de cara, o que essa memória distante tem a ver com o universo camusiano, nem como ela me deixa mais próxima de entendê-lo. Mas, bem, guarde-a por enquanto — prometo que ela voltará mais tarde.

Meu primeiro contato com Albert Camus foi um completo desastre. Pode-se dizer que foi ódio à primeira vista: um ódio fervoroso e potente. Fui persuadida a ler O Mito de Sísifo por um poema de Drummond que meu professor trouxera em uma aula particularmente encantadora de Literatura Brasileira. O nome do poema era ‘O Elefante’ — a pequena narrativa de um eu-lírico que, com seus retalhos de homem quebrantado, fabrica um elefante para desbravar o mundo em seu lugar, em busca de alguma coisa sublime e de suma importância que não sabemos bem o que é, mas da qual todos carecemos. Ao final tanto homem quanto elefante falham, mas permanece a promessa: “Qual mito desmontado/ Amanhã recomeço”.

Achei os últimos versos tão lindos que fiquei intrigada. O professor disse que eram uma referência direta a Sísifo, o rei que é condenado por Zeus a empurrar uma pedra enorme ao longo de uma montanha interminável, pela eternidade, apenas para vê-la cair sempre que chega ao topo. Ele mencionou também um certo Albert Camus, que articulara um livro inteiro em torno desse mito e da ideia que me parecera tão fascinante: amanhã recomeço

Já fazia bem um tempo que o nome me deixava curiosa, haja vista o fato de vários amigos se caracterizarem como absurdistas de carteirinha e insistirem, com impaciência, para que eu também me convertesse. Ouvir meu professor falar sobre ele foi o incentivo que eu precisava para tentar descobrir o que é que Camus tinha de tão único , afinal, que justificasse todo o alvoroço. 

Mas, bem, foi uma decepção terrível: não consegui, por mais que tentasse (e eu tentei muito), ver qual era o encanto. Não senti nada nem remotamente parecido com aquilo que havia enchido meu coração ao ler sobre o elefante de Drummond. 

(…) se o mundo é nada além de um ponto de interrogação, por que é tão desprezível passar a vida se doando a ideias eternas?

Em O Mito de Sísifo, Camus se propõe uma única questão: o suicídio. Investigar se essa é uma saída válida para a falta de sentido no mundo. “[Qual é] o sentimento incalculável que priva o espírito do sono necessário para a vida?”, ele se pergunta. A resposta é uma só: o absurdo, nada menos que o abismo entre o apelo humano por unidade, sentido e absoluto, de um lado, e o “silêncio irracional do mundo”, de outro. É o gosto amargo que Sísifo sente na boca, a náusea que sente no estômago, ao ver a pedra rolar montanha abaixo, cobrindo de poeira o caminho árduo que ele acabara de traçar com seus pés fracos e humanos, e perceber que ele precisará encontrar forças para traçá-lo de novo. E de novo e de novo. 

Diante desse absurdo, que nos revela que não há nenhum motivo determinado para sermos uma coisa e não outra, ou mesmo para fazermos uma escolha em detrimento de outra, nos resta decidir se vale a pena viver mesmo sem motivos absolutos para viver. E quem não gostaria de investigar o problema, tentar encontrar uma solução? 

Camus está certo quando diz que primeiro é preciso decidir se ficaremos vivos para depois pensar em metafísica. Está certo quando se propõe a encontrar uma resposta. Talvez esteja até certo quando oferece a sua: sim, a vida vale a pena, ele diz, mas só vale se nos dispomos a olhar o absurdo no olho, a jogar fora as ilusões que nos vendem um mundo que não é este, frio e vazio. Quanto a isso não sei, e tampouco posso opinar. Mas ele promete mais do que cumpre. Passa tanto tempo nos convencendo do que é o absurdo que acaba por descredibilizar qualquer afirmação que ele mesmo faça — e por esquecer de nos explicar a lógica por trás de seu veredito, que carece de argumentos razoáveis. Se não há valores absolutos, também não há razão, de cara, para acreditar no que ele diz. 

Parece demagogia dizer uma coisa dessas. Quem sabe alguém me responda que a ausência de valores absolutos não significa a ausência de todos os valores, e que decerto a lógica e a razão nos ajudam a discernir o que vale e o que não vale até certo ponto. Mas Camus não vai nem até onde leva a lógica. Ou melhor: sua lógica é falha e cheia de argumentos vazios. O Mito de Sísifo é um livro hipócrita. 

Camus levanta milhares de perguntas que deixa sem resposta, ou que responde sem nos contar o porquê. Critica outros autores por darem saltos lógicos, mas acaba por fazer exatamente o mesmo: por que seu veredito é sim?; por que ele confere a esse sim um sentido tão específico?; se o mundo é nada além de um ponto de interrogação, por que é tão desprezível passar a vida se doando a ideias eternas? Perguntas cuja resposta é silêncio. 

Ele fala de Tolstoi, Kirilov, Kierkegaard, e os condena por dar saltos de fé em direção a algo que a lógica não pode provar — sendo que, por seu próprio raciocínio absurdo, não há como ninguém no mundo evitar fazer o mesmo. Sem regras absolutas, o que sobra é tatear no escuro, seja lá para onde ele nos leve. O importante é tatear. Buscar. Não? 

Camus defende a razão e a lógica, mas seus próprios argumentos mostram o quanto são falhas. Ele se pergunta: devemos nos matar? Responde: Não. Mas sua justificativa permanece na rasura do porque não, o que presumi ser um jeito covarde de conciliar a falta de respostas e porquês com a necessidade de tomar para si a autoridade de conferi-los. Senti-o desonesto. Arrogante. Percebi que falava sobre um assunto de importância crucial e subjetiva para ele — o que presumi quando me dei conta de que os homens absurdos por excelência (Don Juan, o criador, o ator, o conquistador) são ideais a partir de características do próprio Camus —, mas que fingia estar do lado da lógica, da razão. Falava sobre esses problemas, que eram quase sua raison d’être, como se fosse indiferente a eles. Como se fosse objetivo. À época, não soube identificar bem o que me incomodava. Mas sabia que havia algo de errado, algo que impedia O Mito de Sísifo de me emocionar como ‘O Elefante’ o fez. Eis uma pessoa que se importava demais com o que estava escrevendo e ainda assim agia como se estivesse montando a lista de compras da feira com o maior desinteresse e a maior imparcialidade do mundo. 

Esse não era o problema todo, é claro. 

A verdade é que não concordar com a proposição “é preciso imaginar Sísifo feliz” não cancela o fato de que Camus escreveu um livro bonito. Sem coração, sim. Com falhas demais para alguém tão arrogante, sim. Mas bonito. Poético, quase. Cheio de frases incríveis, do tipo: “Do vento da noite até esta mão em meu ombro, cada coisa tem sua verdade. É a consciência que a ilumina, pela atenção que lhe presta”. 

A verdade é que havia outras questões entre Camus e mim que me impediam de enxergar a beleza através de sua aparente frieza. A começar pelo fato de que ele possuía um dicionário secreto, diferente do meu. Quando ele dizia “amor”, eu presumia que ele queria dizer amor romântico ou algum de seus correlatos. Mas não: amor é uma palavra especial no vocabulário de Camus, como logo veremos. É uma palavra sem fundo, que poderia engolir o mundo — e é bem isso mesmo o que ela quer dizer, essa vontade de engolir o mundo inteiro. Quando ele dizia “esperança”, eu a entendia no sentido mundano: espero que amanhã chova, que meu amor seja correspondido, que eu receba uma mensagem. Mas Camus falava de uma esperança metafísica: a esperança “de uma outra vida que é preciso ‘merecer’, [truque] daqueles que vivem não pela vida em si, mas por alguma grande ideia que a ultrapassa, sublima, lhe dá um sentido e a trai”. 

Quem diz que o absurdo é a ideia chave para compreender Camus o entendeu errado, como eu o havia entendido errado. Não, as palavras que guardam a essência de sua obra são as que acabei de dizer: amor à vida.

A essa dificuldade de tradução se somava o fato de que Camus partia de um ponto de vista muito distante do meu. Ele, um homem de certezas apesar de viver num mundo sem certezas, era completamente incompreensível para mim, que nunca tive firmeza nem ao decidir o que comer no café da manhã. Camus era um homem de ação, e ação sempre me foi um objetivo desafiador demais e portanto inatingível. O que quer que possa ser dito sobre O Mito de Sísifo, (e a despeito do que eu mesma já disse), seria mentira dizer que seu autor não acreditava no que dizia com cada fibra de seu ser. Mais mentiroso ainda seria negar que ele vivia cada palavra que escreveu. Posso dizer sem exagero que, bem, ele me assustava. Era demais meu oposto. Simples assim. 

O que eu faria com isso, então? O Mito de Sísifo não era para mim. Mas alguma dimensão de seu universo me alcançava, cuja semente era a ideia do amanhã recomeço mas cujas raízes eu ainda não conseguia compreender. Decidi por traduzir minha confusão em ódio: faria de Camus meu inimigo pessoal e traçaria uma cruzada contra ele. Eu mostraria a meus amigos, do alto de uma arrogância hipócrita, o quanto eles estavam errados e o quanto o absurdismo era risível, coisa infantil e sem fundamento. Iria convencer a todos de que Camus tinha um ar racional demais para toda a irracionalidade que se escondia por trás de sua postura lógica e que portanto não valia a pena perder nenhum tempo com ele. 

Mas eu mesma perdia, e muito. Horas e horas. Sem que eu nem percebesse, elencar todos os motivos pelos quais O Mito de Sísifo era patético tinha se tornado meu hobby preferido. Meu fascínio inicial por ‘O Elefante’ era um pedregulho em comparação à montanha que meu novo ódio por Camus compunha, movendo meu coração muito mais que o poema que me servira de inspiração. Era questão de tempo até que ficasse impossível negar para mim mesma que, quer eu gostasse quer não, Albert Camus exercia sobre mim um encanto que eu não entendia e que era poderoso demais, irresistível demais. Eu não conseguia abandoná-lo. Ele me intrigava, me contrariava, me fazia pensar. Ele era a pulga atrás da orelha que eu não conseguia evitar coçar e que no fundo eu adorava coçar. 

Eventualmente minha indignação diminuiu e fiz uma longa digressão por outros filósofos, mas nenhum parecia me deixar tão curiosa quanto Camus ou fazer minha mente fervilhar em incompreensão ardente como ele fazia. Quer dizer, tudo em filosofia me é muito difícil e incompreensível, mas o que eu sentia com Camus era diferente. Era um não-entender sem fronteiras; uma doçura de burrice, como diria Clarice Lispector, que me deixava inquieta: queria entender um pouco. Mais que isso, até. Minha incompreensão era chama de fogo acesa, me enchia de algum mistério profundo e inexplicável e me deixava com fome

Foi então que me dei conta, em epifania súbita, da verdade inegável. Eu não compreendia como não tinha visto antes o que agora era óbvio: o que eu queria não era contestar Camus. Eu queria — não, eu precisava — decifrá-lo. Precisava engoli-lo como ele gostaria de engolir o mundo, amá-lo como ele amava seu mundo absurdo, prestar minha atenção a ele e deixar que sua verdade se iluminasse. Precisava entender por que ele dizia o que dizia. 

Me afoguei, então, numa tentativa ávida de desvendar o mistério que ele me era: devorei livro após livro, palavra após palavra, ideia após ideia. Me afundei tanto que, em pouco tempo, ninguém mais aguentava ouvir as palavras “Albert Camus” saindo da minha boca. Mas eu precisava falar, mais e mais; precisava me afundar no universo fascinante que seus livros compunham; precisava me embriagar e me impregnar, mais e mais, do amor à vida que ele expressava com tanto ardor. 

A verdade é que Camus se fascinava demais com a beleza indiferente que encontrava no mundo para não amá-la com todo o fôlego que tinha.

Quem diz que o absurdo é a ideia chave para compreender Camus o entendeu errado, como eu o havia entendido errado. Não, as palavras que guardam a essência de sua obra são as que acabei de dizer: amor à vida. Camus fingia ser um homem de razão, mas ainda não encontrei nenhum autor com tanto fervor e paixão sinceros quanto ele. Era amor o que fazia com que ele fosse quem ele era. Em O avesso e o direito, ele escreve “se eu amava, então, ao entregar-me, enfim era eu mesmo, já que só o amor nos faz sermos nós mesmos”. E foi exatamente esse amor que fez com que me fosse difícil entender como, em O Mito de Sísifo, ele tinha a audácia de sugerir que a indiferença é o melhor modo de se viver num mundo absurdo. Como ele sequer poderia se dizer indiferente quando escrevia sobre as coisas naquele tom efervescente que indicava tudo menos indiferença? O que ele queria dizer com isso? 

Quanto mais eu lia, mais essa indiferença me parecia estranha, particularmente quando Camus escrevia sobre a guerra e o pós-guerra. Em Cartas para um amigo alemão, uma reunião de cartas dirigidas aos nazistas, escritas ao fim da ocupação alemã em Paris, junto de artigos do pós-guerra que ele escreveu tanto no jornal em que era redator-chefe, Combat, como em outros locais, fica evidente a passagem de um Camus esperançoso para um Camus desapontado. A princípio, um Camus que fala, com seriedade, em valores absolutos (e que parecem contraditórios vindos de um autor que defendia um mundo sem sentido e sem metafísica), como justiça, bem e verdade, os quais voltariam a reinar no mundo depois da derrota dos alemães. 

Depois que a guerra acaba, é perceptível a mudança de tom nos artigos que ele publica. Com a descoberta decepcionada de que o mundo era aquela coisa feia que ele estava vendo mesmo — e quiçá isso não tivesse necessariamente a ver com a ideologia cruel na qual os alemães acreditavam —, e que justiça, bem e verdade talvez fossem um pouquinho abstratos demais para caber na realidade, suas palavras passam a carregar um tom de desnorteamento, de verdadeira desilusão. 

A esperança do início é particularmente curiosa quando se tem em mente que, dois anos antes de escrever as Cartas, ele já tinha publicado O Mito de Sísifo, no qual defende com todas as palavras que “enfrentando até o fim essa lógica absurda, tenho de reconhecer que essa luta [de permanecer em constante confronto com o absurdo] pressupõe a total ausência de esperança”. Como o mesmo homem que escreve as Cartas pode fazer apelos à indiferença? E o que dizer, ainda, da paixão dele pelos verões de Argel, que, embora suscitada pela natureza indiferente, não tem nada de indiferente em si própria? Sua apatia fingida me irritava. 

Mas, bem, ela era um disfarce, é claro. Camus era um homem apaixonado. Sua paixão dá as caras sem reservas sempre que ele fala sobre sua cidade natal, Argel. O sol de Argel, o verão de Argel, as mulheres de Argel, o povo sem passado de Argel. Ele sentia um amor profundo pelo chão que pisava, o céu que lhe encobria o mundo, o ar que respirava. Esse amor não se limitava a Argel, mas se estendia por tudo que fosse vida, por tudo que fosse vontade de mais. 

A meio caminho entre o amor e o absurdo, Camus se dilacerava entre os dois: “… toda a questão é saber se podemos viver com nossas paixões, se podemos aceitar sua lei profunda, que é queimar o coração que elas ao mesmo tempo exaltam”. A verdade é que Camus se fascinava demais com a beleza indiferente que encontrava no mundo para não amá-la com todo o fôlego que tinha.

Naquela manhã luminosa de sábado, quando eu era tão pequena, o que eu senti foi esse mesmo amor sem fundo pelo mundo e por sua beleza: pelo vento em meu cabelo; pela rua vazia; pela luz que passava por entre as árvores. Eu já havia entendido, então — antes mesmo de entender —, toda a razão do fascínio de Camus, do encanto que me prendia a ele naquele laço misterioso que encobria meu coração por completo. 

E o motivo era tão, mas tão simples. 

Era o amor à vida que se expressava no que eu sentia ao ver a luz do sol. O que Camus me revelou com sua paixão — paixão pelo verde, pelo azul, pela areia das praias de Argel, pelo vento cruel em Djemila, pelas nuvens que são o teto do mundo — foi essa felicidade encontrada nas alegrias ordinárias e mundanas da vida, nas manhãs de sábado, no calor de verão que nos queima a pele. Camus desvelou uma verdade secreta e profunda: a de que contemplar a luz do sol, esse ato tão simples, de uma simplicidade absurda, é na verdade um tipo de felicidade gratuita que, com o mínimo de atenção, pode fazer transbordar nosso coração. 

(…) a paixão de Camus é um lembrete de que, na indiferença do universo, há outro lado da moeda: essa felicidade ordinária, esse amor profundo à vida.

Foi só então que pude entender a última frase emblemática de O Mito de Sísifo: il faut imaginer Sisyphe heureux. Sísifo só pode ser feliz porque, em meio à náusea amarga que toma seu estômago, ele se lembra de que tem olhos. Tem olhos e pode ver o céu azul, tem mãos e pode sentir a quentura do sol, tem nariz para sentir o frescor do verde. Sísifo tem corpo. O mundo à sua volta existe para o seu corpo. Existe para que veja, e sinta, e cheire. Sísifo olha, Sísifo sente, Sísifo cheira, e só então seu coração se inunda, e ele é feliz. Só faz sentido pensarmos nesse Sísifo feliz, ou ao menos considerar plenamente o que essa felicidade significa, se pensarmos no Camus de Bodas de Tipasa, seu melhor livro: o Camus de Argel, do sol, do mar. O Camus que não se esconde por trás de uma distância e de uma objetividade fingidas; o que tenta abraçar com suas palavras todo o amor que sente pela frieza do mundo. 

Através de suas lentes, enquanto eu lia sobre o verão da Argélia e sobre o sal que amarga a boca dos que o desafiam e sobre a sombra de casais apaixonados que se fundem em perfeita harmonia em Tipasa, senti vontade de também ser parte desse casamento do Ser com o mundo. Quis me perder numa cidade desconhecida, num país qualquer, e sentir o desespero do absurdo apenas para mais tarde reconciliar-me com a beleza indiferente da natureza. Senti vontade de me render com verdade ao meu corpo de mulher, de entregá-lo ao hedonismo dos prazeres do chão e da carne. Percebi que não queria mais o teatro de deixar meus dias moldarem-se uns aos outros, todos iguais, como se eu tivesse tempo infinito para um dia, quem sabe, mudá-los. Me lembrei de que não sou imortal; não viverei o para-sempre, somente o agora. Esse agora que, com o grito de Camus, me assaltou com força de emergência, com o aviso de perigo, ele está indo embora. 

Me dei conta de que era preciso ir à praia, sentir o sol na pele, o sal nos lábios, o prazer da carne, o retumbar da música. Era preciso esquecer o mundo para abandonar-se ao mundo; esquecer de si para se abandonar a si. Era preciso sentir essa vontade de potência, de vida, que, quando prestamos atenção mesmo, se traduz em amor. Não amor num sentido brega, mas no sentido exato desse sentimento epifânico que nos arrebata quando experimentamos o sublime no ordinário e percebemos que, muito mais encantador que se perder em ilusões de um depois distante, é abrir os olhos para tudo de infinitamente belo que nos cerca agora. Se Camus insiste em fingir dizer não para toda esperança metafísica ou ilusória de vida futura, seja ela como for, é apenas para dizer sim com mais força para o coração que bate nesse instante. Para ele, só existe um tipo de amor, ao qual quase tudo no mundo se reduz, e esse amor é o amor inebriante à vida, aqui e agora.

Por que ler Albert Camus, então? Não pelo seu absurdo, sobre o qual tantos outros falaram não só bem como melhor. Não por sua arrogância. Com certeza não por sua racionalidade fingida. Mas porque em tempos em que é tão difícil ver a beleza nas coisas terrenas do mundo, em que o pessimismo é quase que pré-programado em nossa geração, em que aprendemos a vestir a máscara de cinismo antes mesmo de soletrar o alfabeto, em que a angústia se impregna no próprio ar que respiramos, em que esperança é sinônimo de desespero e todo futuro está suspenso, a paixão de Camus é um lembrete de que, na indiferença do universo, há outro lado da moeda: essa felicidade ordinária, esse amor profundo à vida. Camus é um alívio e um colete salva-vidas nesse mar desesperador. Porque é esse lado da moeda que faz toda a diferença. 


TEXTOS CONSULTADOS:

CAMUS, Albert. O mito de Sísifo: ensaio sobre o absurdo. Livros do Brasil, 1961. 

_____________. Letters to a German friend. Resistance, rebellion, and death, p. 1-32, 1960. 

_____________. Núpcias, o verão. Tradução de Vera Queiroz da Costa e Silva. São Paulo: Círculo do Livro, 1979. 

DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Nova reunião: 19 livros de poesia. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: INL, 1983.


Foto de Maria Cecília Chaves Machado.

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