Escritora e fotógrafa, Lorraine Ramos Assis, 25 anos, foi publicada em diversas revistas, tais como Ruído Manifesto, Mallarmargens, Vício Velho e Aboio. É estudante de Sociologia, na UFF. Integrou a antologia Ruínas, da editora Patuá, e a antologia LiteraturaBr. Escreve desde poesias a prosas, sejam poéticas, resenhas literárias ou ensaios. Concedeu duas entrevistas no canal “como eu escrevo”. Colabora com o portal Faziapoesia e Revista Caliban.
Neon, da química, menos cor, provindo do neônio. Letreiro luminoso em que se utiliza este determinado gás. Etimologicamente, do Grego NEOS, “novo”, pois retrata-se de um elemento recém-descoberto quando o nomearam, em 1898.
Partindo do significado atribuído ao título do livro de estreia do poeta e editor, André Luiz Costa, Ciclo Neon (Editora Bestiário, 2021), maiores clarificações podem – e devem – ser tratadas como uma luminescência recém-descoberta nos versos inscritos na obra, elaborando temas tais quais o registro da memória; o descontentamento existencial; espacialidade dos planos urbanísticos; as circunstâncias políticas de nossos tempos e o jogo corporal das sensações.
O primeiro poema se estabelece nas particularidades da infância, momentos vividos na urgência de uma recordação visceral.
da infância fruta
apodrecida
casca de ferida
rarefeita
mandíbula deslocada
da infância sentimento
fósforo riscado
incêndio
cama convulsa
do corporal
Depreende-se do escrito a memória do sujeito em efeito sinestésico, ou seja, percepção através dos órgãos dos sentidos humanos. A mandíbula deslocada por um movimento ou voluntário ou involuntário, mas sempre trazendo-nos a lesão de um registro de reminiscências do sujeito-lírico em euforia, de modo a ser “cama convulsa” do corporal.
A comunicação narrativa se dá mediante a reflexão da tragicidade do fato ocorrido. Percebemos o duplo da poesia: o sujeito do corpo e o corpo do poema. A mandíbula, por se tratar de um osso móvel compondo os dentes, a gengiva, a boca, representa, aqui, uma memória da língua; uma fala a ser realizada por um sentimento difícil de ser ofuscado justamente por ser incendiário. Denúncia da casca ferida.
Ao decorrer da montagem artística poemática, um dos textos, “cidade baixa”, faz jus à captação do compromisso com o testemunho, além de fornecer imagens do espaço, do ambiente da produção do urbanismo.
depois que o barro seca
e as carroças passam
e os cães farejam odores
limpos
o menino vê
na rua da margem
um homem ser esfaqueado
e o homem esfaqueado é manuel
seu pai
Na fronteira da humanidade e inumanidade, dos animais e os humanos, se atravessa a necessidade de narrar e o sofrimento da recordação. A ilustração dos cães a sentirem pelo olfato algo límpido e o paradoxo do “sujo” sangue a ser jorrado percorre o universo de passagens da cidade, a exemplo da rua da margem.
Representações cotidianas e representações simbólicas, o urbano se concretiza como conjunto polifônico, vozes audíveis a serem emanadas – igual luz – na arquitetação da linguagem da imagem descrita na composição textual “fevereiro”:
talvez estivesse agora
saindo de um bar na joão alfredo
percebendo como disse um dia
a neblina de outro tempo
nem as casas nem os prédios tombaram
nem você que continua assim na memória
não precisou da velhice para acontecer o pior
matadouro iluminado por sirenes
A compreensão do narrador deriva de uma inquietude: o advérbio talvez assinala um questionamento ao leitor e a si mesmo, de forma a se ter uma conjunção temporal com “a neblina de outro tempo”. Mais uma vez a configuração espacial é formada, sendo um dos pontos característicos do livro: o memorialístico.
O composicional dos prédios e casas retomam o lugar do discurso do sujeito em constância, em andança, mesmo que interagindo com a possível vertigem da velhice, neste momento não concretizada com o fito de uma situação negativa.
Redimensionando o título, a resplandecência situa-se desta vez em outro recurso do paradoxo vida e morte: matadouro. O autor comparece com o real, com o fragmentado a ocupar a ambiência e se expandir na versificação de um conteúdo dramático.
Não obstante, a visão intimista é enfatizada de uma maneira analítica: as coisas do mundo objetivo tornam-se quase que objetos de estudo no itinerário do(s) indivíduo(s), tensionando ao uso descritivista dos elementos da montagem poética, tendo em vista os detalhes de coloração e largura do estofamento de um sofá, ou da poltrona da sala de estar em “memória de general câmara”.
Na intimidade do poeta, as dicções se transformam no olhar mais corriqueiro possível a quem esteja adentrando em suas camadas, em suas estrofes. Se ele está em constante observação, quem o lê também está.
Importante salientar a captação imagética das fotografias referidas em alguns escritos. Se a fotografia é o recorte de uma realidade estática, ela igualmente representa um movimento, uma ação.
O uso dos filmes, do analógico, pode ser compreendido como o mecanismo de não deixar que as lembranças se apaguem, se instalem no inconsciente esvaziado do caminhante. É esta a atitude em “vermelho, azul, verde”.
Na definição do escritor Roland Barthes, temos o punctum. Ele seria, em suas reflexões acerca da fotografia, o “pequeno orifício, pequena nódoa, pequeno corte e também lance de dados. O punctum de uma foto é o acaso que, nela, me aponta (mas também me contunde, me apunhala)”, extraído da revista Cahiers du Cinéma.
Similar a uma bandeira, as cores são artifícios usuais. Em “cientista político”, o atravessamento cíclico de gestores de turno do país são afirmados com um sentimento arraigado na desesperança e na raiva. Inclusive a ponto de colocar fogo em si mesmo.
Ciclo Neon, portanto, caminha em direção ao retrato de um flâneur. Um eterno andarilho a refletir sobre a condição subjetiva e coletiva de uma sociedade que, mesmo em tons acinzentados pelo astroso, continua a gritar por uma clarificação.
Foto de Anna Carolina Rizzon.