Yvonne Miller nasceu em 1985 na Alemanha, mas prefere o calor do Nordeste brasileiro, onde mora desde 2017. Cronista e contista, tem textos publicados em várias antologias e é uma das organizadoras e coautoras da coletânea de contos cearenses Quando a maré encher (Mirada, 2021). Pela Aboio, publicou Deus criou primeiro um tatu – Crônicas da Mata (Aboio, 2022).
Estou numa situação complicada. Recebi muitos elogios sobre minha última crônica, o que, em teoria, é ótimo. O problema, na prática, é que quase todos os comentários vieram carregados de altas expectativas quanto à continuação da história: a Larissa escreveria aquela mensagem para a vizinha? Como esta reagiria? Em último caso, seria possível uma aproximação através do gato? Acabaria rolando, enfim, o convite para um café?
Aiai! Quem me mandou usar aquele truque do Rubem Braga no final do texto para criar curiosidade sobre o próximo? Mas agora o leite já estava derramado, a criança fora despejada junto com a água, e eu teria que dar um jeito para que a história, uma vez começada, continuasse. Ainda bem que o tempo estava a meu favor: o prazo para a próxima crônica ficava a uma distância segura de quase duas semanas. Em duas semanas pode acontecer muita coisa, inclusive a Larissa resolver seguir meu conselho e colar na janela um papel com uma mensagem para a vizinha da frente. Esperei uma semana, e nada. Fiquei preocupada. Teria que dar uma forçada na minha protagonista, ou minha credibilidade como cronista correria sérios riscos.
Passei então a observar melhor a rotina da personagem para descobrir a hora mais oportuna para a abordagem. Logo percebi que o momento mais certeiro seria depois do passeio com Chico. Vulnerável e vitoriosa após vencer os quatro andares de escada, estaria disposta a quase tudo. Preparei a emboscada e esperei. Quando a porta se abriu naquela tarde de sábado, quatro dias antes do fim de prazo, eu já estava a postos.
— Amor, você precisa escrever aquela mensagem para a vizinha — disparei.
— De jeito nenhum — ela tentava recuperar o fôlego enquanto livrava Chico do peitoral. — Acabei de encontrar o namorado dela na garagem. Olhei fundo nos olhos dele e disse bem alto “boa tarde”. E nada! Me ignorou completamente! Vou escrever coisa nenhuma, num quero mais saber desse povo.
— Mas o público quer saber! Não sou nem eu que estou pedindo, é o público!
De nada adiantou. O argumento mortal pôs fim à discussão:
— Você é escritora. Inventa!
Até a entendo. Custei a me acostumar com essa característica dos nossos vizinhos. Quantas vezes cumprimentei alguém na escada ou no caminho à portaria e tudo que recebia de volta era um olhar desconfiado? Ou nem isso. No Papicu não se cumprimenta. Não sei se essa regra se aplica à população papicuense em geral, mas pelo menos aqui no condomínio é assim. A única exceção são os porteiros, o zelador e a síndica. E os donos de cachorros. Alguns. Mas, para dizer a verdade, também esses cumprimentam em primeiro lugar o Chico e só depois, meio que em consequência e meio que por obrigação, a gente. Daria pra realizar altos estudos sociológicos sobre isso. Mas eu não sou socióloga, sou é cronista. E mais: sou cronista com um prazo; coisa seríssima.
Já que minha protagonista havia se aposentado da história, resolvi eu mesma tomar as rédeas. Descartei a vizinha da frente ao mesmo tempo em que lembrei do casal não-antipático do segundo andar. Já haviam sorrido algumas vezes para a gente na escada, o que pode ser interpretado como um bom começo. Cinco minutos mais tarde, enfiei um envelope com uma folha dobrada embaixo da porta deles:
Oi, vizinhos.
Vocês querem tomar um vinho com a gente mais tarde?
Larissa e Yvonne do 401
(WhatsApp: …)
A resposta – negativa – veio pouco tempo depois, num tom formal e distante que não instigava a futuros convites do tipo.
Talvez pensem que somos psicopatas. Talvez não queiram aparecer na minha crônica. Ou talvez seja simplesmente um casal papicuense raiz. E o povo do Papicu num quer papo.
Papicu (Fortaleza), junho de 2023
Desenho de Ariyoshi Kondo.