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Sonata para pistões e êmbolos, por Daniel Baz

por Daniel Baz
Arte: Two Figures in a Railroad Car, de Jean Frédéric Bazille.

Daniel Baz nasceu em Rio Grande-RS. É professor do IFRS – Campus Rio Grande. Publicou o livro de poemas Antes que o mundo aconteça (Concha, 2016) e os volumes de crônicas Formas de fingir pássaros (E-Liber, 2021), finalista do Prêmio AGES Livro do Ano 2022, e Da água que se faz onda e espelho (E-Liber, 2023).


– Tá ouvindo? 

Era a terceira vez que o meu pai me fazia a mesma pergunta. Eu não podia responder algo diferente do que dissera nas duas vezes anteriores, há menos de um minuto, então repeti simplesmente: 

– Não, não ouço nada. 

Ele finalmente desistiu, não sem antes arquear os ombros em sinal de franca decepção e aumentar novamente o volume do sertanejo que tocava no rádio do carro. Aproveitei seu silêncio de desistência para refletir sobre o nosso diálogo. Dez minutos antes, eu estava me dirigindo ao Instituto Federal onde trabalho, quando ele buzinou e me ofereceu carona. Após as atualizações de praxe – “E a mãe?”, “E a Lu?”, “E o trabalho?” –, começou a insistente inquirição cujo objetivo era saber se havia algo de errado com seu carro. Disse, irritado, que o veículo tinha recém voltado da oficina, mas já estava fazendo um barulho estranho. Por isso, baixou o rádio e indagou: 

– Tá ouvindo? 

Não, não estava. E isso não era novidade para nenhum de nós. Meu pai sempre gostou de carros, diferente de mim que, até hoje, nunca tive um. Nada entendo deles. Quando peço um Uber, me guio pela cor e pelas informações constantes na placa, pois Sedan, Renault e Nissan soam para mim como uma banda de rock progressivo da década de setenta ou como um grupo de iluministas que poderiam tomar chá com Rousseau e Voltaire, nunca como um meio de transporte. Meu pai, por outro lado, passou a vida inteira em volta de baterias e carburadores, trocando de modelos de segunda mão por outros em melhor estado, tentando, assim, ter um carro cada vez mais confortável e atualizado. Ano passado, depois de décadas de Brasílias, Fuscas e Chevettes, finalmente conseguiu juntar dinheiro para adquirir um automóvel um pouco mais emendado, do ano de 2005, “com ar condicionado e tudo”, vibrou ao me contar a novidade. 

Mas, se os modelos e procedências dos carangos mudaram frequentemente ao longo dos anos, sua obsessão de ter o “pé de borracha” em perfeitas condições permaneceu inalterada. Nisso sempre foi obsessivo. Quando eu era pequeno e nos dirigíamos de automóvel com minha mãe e minha irmã para alguma localidade mais afastada, sempre chegava um momento em que ele desligava a música, pedia silêncio e inclinava a cabeça para perscrutar o ambiente com atenção. Depois de alguns instantes, trazia o aguardado veredito, que variava entre coisas como “São as pastilhas de freio que estão gastas.”, ou “Tem que trocar o rolamento.”, ou ainda “O pneu tá descalibrado.”

Nessas situações, eu me esforçava para auscultar aqueles ruídos que ele captara, certo de que eram necessários poderes mágicos para consegui-lo. Não entendia como algo tão mecânico, feito de aço, borracha e graxa, poderia propiciar uma experiência tão metafísica. Ainda não entendo. Meu pai parecia conhecer um código misterioso que poderia significar o fracasso ou o sucesso dos nossos passeios e viagens, além de garantir que nossa vida se mantivesse em segurança, afinal uma pastilha de freio deteriorada e um rolamento não substituído, para a imaginação de uma criança, poderia acabar em capotamento seguido de explosão. 

Eu cresci, deixei de acreditar em fábulas e quimeras, mas continuei deslumbrado pela habilidade do meu pai, que, agora, estava mais para uma espécie de Hermeto Pascoal, capaz de pinçar sonoridades carregadas de significado dos objetos menos sinfônicos do cotidiano. Por isso, sempre que ele me convidava a reparar nos acordes fatalistas do seu carro danificado, eu me esforçava penosamente para extrair de algum “tréc”, “sláp” ou “clóc” a nota de abertura da sonata para pistões e êmbolos que somente meu pai escutava. 

Agora, sendo levado por ele ao trabalho, percebi que, mesmo passando uma vida debruçado sobre os livros, atento para as musicalidades da poesia, para a cadência das estrofes do Vinicius, ou para o ritmo da prosódia do Guimarães, ou marcando as tônicas em um verso do Drummond, ou então anotando, fonema a fonema, as aliterações num soneto da Cecília, não me era dado o dom de sondar aqueles timbres tão cotidianos da vida, apenas, sem mistificação. Dobramos na esquina do IF. Com a carona, eu chegaria mais cedo para minhas aulas. Contudo, já não saberia o que poderia ensinar aos meus alunos, estando tão surdo aos sons do cotidiano, os quais, mais do que o talento de interpretar, não me era dado a vocação para ouvir. 

Quando meu pai parou na frente do Instituto Federal, vi que estávamos em duas margens distintas. Cada um, para sempre, em camarotes diferentes, incomunicáveis, de duas óperas pessoais: a dele feita de árias besuntadas de óleo; a minha, repleta de assonâncias ritmadas em redondilhas. Antes de abrir a porta do carro, inclinei-me em sua direção e lhe dei um beijo no rosto. Fez-se um bruto silêncio a dois, do qual eu só podia ouvir a metade. O que será de um filho que não conhece o silêncio do pai? 

Quando bati o ponto na portaria, as lágrimas ainda não tinham secado.


Arte: Two Figures in a Railroad Car, de Jean Frédéric Bazille.

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