Yvonne Miller nasceu em 1985 na Alemanha, mas prefere o calor do Nordeste brasileiro, onde mora desde 2017. Cronista e contista, tem textos publicados em várias antologias e é uma das organizadoras e coautoras da coletânea de contos cearenses Quando a maré encher (Mirada, 2021). Pela Aboio, publicou Deus criou primeiro um tatu – Crônicas da Mata (Ed. Aboio, 2022).
Minha esposa tem uma não-história traumática com a vizinha. Começou há sete anos, quando se mudou para o apartamento aqui no Papicu. Um belo dia, a Larissa estava esvaziando as caixas e colocando os livros na estante, quando viu com o canto do olho que uma moça acenava simpática e insistentemente para ela da varanda da frente. Considerando os movimentos chamativos da vizinha e o fato da sua varanda ficar a menos de três metros em linha direta, era praticamente impossível fingir não vê-la. Mesmo assim, foi isso que a Larissa fez. E uma vez que tinha começado a fingir que não via a outra – que certamente queria lhe dar as boas-vindas, convidá-la para um café mais tarde ou dizer algo bacana do tipo “se um dia precisar de um ovo ou uma xícara de trigo, é só falar, viu?”, – uma vez que tinha começado a fingir que a outra não estava ali, praticamente ao alcance da mão, acenando doidamente para ela (agora com os dois braços), não tinha mais como desfazer a desfeita. Como poderia, de repente, levantar a cabeça, olhar para a outra com um ar de surpresa e acenar de volta? Não podia fazer isso; seria óbvio demais. Ou não? Poderia? E quanto mais a Larissa hesitava, com a cabeça enfiada na caixa onde não restava mais nenhum volume para tirar, mais impossível lhe parecia sair da situação com um mínimo de educação e dignidade. Então continuou agachada, o olhar fixo no fundo da caixa vazia, mexendo as mãos lá dentro como se estivesse arrumando alguma coisa, até que percebeu que os movimentos da outra iam diminuindo e, finalmente, parando por completo.
Esse foi o primeiro não-contato com a vizinha da frente, e Larissa, normalmente uma pessoa aberta e sociável, se arrepende até hoje. As poucas vezes que se cruzavam na garagem, a Larissa, sempre meio constrangida, cumprimentava-a educadamente sem nunca obter uma resposta. A outra fingia não vê-la e não ouvir seus ois. Um ano mais tarde eu cheguei em Fortaleza, no ano seguinte nos mudamos de bairro e mais um tempo depois, de estado.
Mas faz pouco voltamos para Fortaleza e para aquele apartamento no Papicu. A vizinha continua ali. Um dia, eu estava arrumando as coisas da mudança na varanda, quando a vi na janela. Levantei a mão para um aceno simpático. Ela me olhou de cara feia. De cara feia misturada com outra coisa, como se tivesse visto algo muito nojento. Baixei a mão e desfiz o sorriso. Não chamei para um café nem disse que podia aparecer aqui se um dia lhe faltasse um ovo ou uma xícara de trigo. Pergunto-me se aquela cara de nojo lhe saiu meio sem querer ou se estava sem óculos e só tentava me enxergar direito, quem sabe. Vai que ela se tocou e agora está arrependida e por isso fica nos evitando na garagem.
Não sei, mas apesar disso tudo, a vizinha parece ser gente boa. Tem um gato vermelho e foi tão simpática – embora ignorada – quando a Larissa chegou aqui. Então estamos esperando a próxima oportunidade para ressignificar essa história toda e tentar um recomeço na nossa relação vizinhal. E talvez eu já saiba como. Porque outro dia a Larissa sonhou com ela:
— Estávamos lá na varanda, fazendo um bolo juntas. Tinha que ser na varanda, porque o gato dela não me aceitava na casa, ficava me mordendo. E o apartamento dela era cheio de estantes vazias. Você também estava, mas não era você mesma, era tipo um robô e ficava falando coisas em alemão.
— Conta isso pra ela! — disse. — Ela vai achar engraçado, e aí você aproveita e chama ela logo pra um café.
— E como vou contar, se ela foge de mim e não tenho o número dela?
— Ah, fácil! Escreve num papel e cola na janela, ué. Ela não tem como não ver. Já fiz isso uma vez; funcionou.
— Um papel? E o que vou escrever?
— Hm… algo chamativo, divertido, intrigante. Que dê vontade de saber mais. Tipo: “Sonhei com você, para mais informações mande um zap”. E aí você coloca seu número embaixo. Que tal?
A Larissa achou legal, pelo menos em teoria, mas até o fechamento da redação ainda não havia decidido se devia ou não seguir meu conselho. Portanto, se você quiser saber como continua essa história, terá que esperar uma próxima crônica.
Desenho de Ariyoshi Kondo.