• 0

    Frete grátis a partir de R$ 110

Um passaporte e um bolinho de canela pra viagem, por Yvonne Miller

por Yvonne Miller
Arte: Staalmeesters, de Rembrandt van Rjin.

Yvonne Miller nasceu em 1985 na Alemanha, mas prefere o calor do Nordeste brasileiro, onde mora desde 2017. Cronista e contista, tem textos publicados em várias antologias e é uma das organizadoras e coautoras da coletânea de contos cearenses Quando a maré encher (Mirada, 2021). Seu próximo livro, Deus criou primeiro um tatu – Crônicas da Mata (Ed. Aboio, 2023), está em pré-venda interativa até dia 23. Clique aqui para garantir 10% de desconto + frete grátis + seu nome em todos os exemplares do livro!


Dia desses percebi que precisaria renovar meu passaporte. Tem exatamente quatro consulados alemães no Brasil onde posso fazer isso, e um deles fica – tatáaa – no Recife. Maravilha. Demorei algumas tardes para juntar a papelada toda e achar uma loja de fotografia onde fizessem fotos biométricas que correspondessem milimetricamente às diretrizes alemãs. Fotos tiradas, formulário preenchido e um monte de certidões e comprovantes reunidos, finalmente agendei um horário para às 10h da manhã na segunda-feira seguinte.

O Consulado Geral da Alemanha fica no bairro de Boa Viagem, na cobertura de uma das torres empresariais ao lado do Shopping Recife. Odeio shoppings, esses templos de consumismo desenfreado, que reúnem em um só lugar várias coisas que também odeio: marcas caras de donos ricos que não dão a mínima para condições dignas na cadeia de produção, música tanto ruim quanto alta nas lojas de eletrônicos, aglomeração, gente que anda devagar ou fica parada no meio do caminho, labirintos de corredores cheios de placas que nunca indicam onde é que se sai desse inferno, luz artificial que chega a doer nos olhos, um frio do caralho, praças de alimentação barulhentas, caixas 24 Horas que cobram uma taxa exorbitante e cafés com bolinhos de canela por 18 reais a unidade. Sério, quem paga isso?

Mas hoje não precisarei nem pisar ali. Sorrio um sorriso superior e vitorioso enquanto me dirijo diretamente ao Centro Empresarial III, informo meu nome na recepção e subo no 16° andar. Meu horário é das 10 às 10h30 e ainda chego com dez minutos de antecedência, como me pediram no e-mail de confirmação. A sala de espera está vazia. Me certifico pela enésima vez que trouxe todos os documentos e espero. Espero. Espero. Cadê a pontualidade alemã? Às 10h30 finalmente me chamam. Ainda tá dentro do meu horário, então – justiça seja feita – nem dá pra reclamar. Vamos lá.

— Bom dia.
— Bom dia. — O funcionário, um cara jovem e simpático, sorri pra mim pelo vidro de separação, e por um breve instante penso ingenuamente que tudo vai dar certo.
— Alemão ou português?
Egal.
Gut, dann Deutsch. Ich möchte meinen Pass erneuern.
Okay, dann geben Sie mir mal Ihre Dokumente.

Coloco a pasta com todas as minhas certidões, comprovantes e as fotos biométricas na gaveta e ele a retira do outro lado. Revisa os papéis. Quanto mais avança, mais franze a testa. Minhas mãos já começam a suar. Aff Maria, o que será que faltou?

— Ah, achei! — exclama ele finalmente, com a testa novamente relaxada e abanando minha Abmeldebescheinigung – o comprovante de cancelamento de domicílio na Alemanha. — Sem isso ia sair caro, hein.

Forço um sorriso amarelo, ainda tensa. Ele começa a copiar meus dados do formulário para o computador. Durante uns instantes, tudo corre bem e em silêncio, até que:

— Cor dos olhos: graublau? Como é isso?

Encaro ele pelo vidro, esbugalhando os olhos para provar que realmente são azuis com cinza.

— Mas é mais pra grau ou mais pra blau?
— Às vezes grau, às vezes blau, às vezes não dá pra distinguir. E às vezes são verdes, também.

Ele já havia colocado as mãos sobre o teclado quando, ao ouvir a última frase, os dedos congelam novamente no ar. Ihhh, não devia ter falado isso. Mas como eu já disse, é um cara simpático, sabe que no fim das contas ninguém vai nem ligar se meus olhos são azuis, cinzas, verdes ou tudo junto, então ele afugenta a dúvida com um sorriso e digita graublau. Expiro, aliviada. Finalmente imprime uma folha e me pede para assinar duas vezes, toma minhas digitais – que a máquina aceita após consideravelmente pouca resistência – e já estou cantando vitória internamente quando chegamos à parte das fotos.

— Tirou aqui na loja Xis?
— Foi.
— Estranho…

Ihhh. Ele vira o monitor e me mostra a tela.

— Está vendo essa marcação laranja aqui? Tem que ser verde. Mas — aí está o sorriso otimista de novo — ainda temos bastantes fotos para experimentar.

Tira de dentro do escaneador o formulário com a foto que poucos instantes antes havia colado no campo previsto, a descola, coloca outra. A marcação continua laranja. Repete o procedimento com todas as fotos, ainda corta uma partezinha aqui e acolá, mas nada da marcação ficar verde.

Tja, das tut mir leid — se desculpa com visível desconforto, — mas a senhora vai ter que tirar fotos novas. Tem que dizer explicitamente que precisa de “fotos biométricas para um passaporte alemão”.

O que foi não só explicitamente, mas também exatamente o que eu disse na loja Xis, que é exatamente a loja de fotografia que o próprio consulado indica explicitamente na sua página web. Falo pra ele. Após um momento sem saber o que fazer, se levanta.

Einen Moment, bitte.

O póbi – tão tenso quanto eu, pelo desfuncionamento do que em teoria é tão milimetricamente pensado que, também em teoria, não caberia margem pra erro – sai da sala e volta com um colega, os dois de testa franzida. Já me preparo mentalmente para entrar naquele shopping ao lado para pagar mais uma vez 40 reais pelas mesmas fotos, quando – tatáaa – a tecnologia deixa de birra e a bendita marcação fica verde. Três suspiros aliviados e sorrisos recuperados. Agora só falta o pagamento da taxa.

— Quanto é?
— 422 reais ou 81 euros.

Coloco meu cartão de crédito alemão na gaveta e o sorriso dele aumenta.

— Show, os cartões desse banco nunca dão problema.

Nunca davam, até hoje. Ele balança a cabeça.

Tut mir leid, a senhora vai ter que sacar o dinheiro em espécie e voltar — e acrescenta, sem me olhar nos olhos, como se soubesse que está pedindo muito: — Se puder ser trocado…

Então é isso. Lá vou eu naquele templo de consumo odiado, pago uma taxa exorbitante para sacar 440 reais – porque obviamente no caixa 24 Horas não tem notas de dois reais, nem de cinco ou dez –, pago 18 conto por um bolinho de canela e volto pro consulado com os 422 reais trocados. Poucos minutos depois, o funcionário coloca a pasta com meus documentos de volta na gaveta embaixo do vidro e se despede com um sorriso.

— Daqui a seis semanas pode vir buscar seu passaporte novo.

Amém.


Arte: Staalmeesters, de Rembrandt van Rjin.

Leave Your Comment

faz um PIX!

Caso dê erro na leitura do QRCode, nossa chave PIX é editora@aboio.com.br

DIAS :
HORAS :
MINUTOS :
SEGUNDOS

— pré-venda no ar! —

Literatura nórdica
10% Off