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A Fresta #13 – Alexandrian em cinco duplas (PT. V)

por Natan Schäfer
Desenho de Ariyoshi Kondo ilustra "A Fresta #13 – Alexandrian em cinco duplas", por Natan Schäfer.

A Fresta é uma coluna quinzenal dedicada às realizações do movimento surrealista e seus entornos.


Alexandrian em cinco duplas: uma quina sobre o escritor Sarane Alexandrian

PARTE V:
A última carta de André Breton a Sarane Alexandrian e o que é necessário

A última carta de André Breton a Sarane Alexandrian

Paris, 22 de setembro de 1964

Caro Sarane Alexandrian,

A partir do instante em que ele pousou em minha mesa, foi de uma sentada que li o seu belo livro Risco de vida [1]. Em minha memória ele irá apoiar as vizinhas d’O outro lado [2] em uma estante pela qual tenho uma predileção especial.

Considerei com melancolia algumas linhas da nota biográfica inserida na obra. Emocionado lhe vendo lembrar do papel que você assumiu na atividade surrealista e me afligindo com a ideia de que foi preciso tão pouco — uma simples divergência quanto ao regime interno ao qual uma empreitada comum está sujeita — para que deixássemos de caminhar juntos.

Ao menos Risco de vida me garante que o melhor daquilo que constitui nossas afinidades profundas foi preservado.

Confie, caro Sarane Alexandrian, em meus sentimentos mais propícios.

André Breton
Tradução por Natan Schäfer

O que é necessário

Lembro bem de como, quando criança, atribuía vida aos objetos 
que me circundavam, sobretudo aos meus brinquedos.

Nasci e cresci em uma cidade muito pequena. Ali, nos anos 1990, assim como suponho que ainda hoje aconteça nesses lugares distantes, grande parte do espetáculo presencial tinha de vir de fora, sob a forma de feiras, circos, etc.

Um dia apareceu na cidade um parque de diversão itinerante que contava, pelo que lembro em posição de destaque, com um trenzinho em forma de lagarta. Se agora imagino que esse trenzinho trazia latente em si uma aeronave — visto que, sendo a lagarta um estágio dos insetos lepidópteros, o destino da maioria delas é voar — na época minha reação àquele brinquedo — ou seria meio de transporte? — não foi tão feliz.

Lembro da profunda melancolia que à noite, quando todos os cidadãos de bem se retiram em suas casas deixando os vilarejos desertos e entregues aos mistérios das luzes de sódio e outros fantasmas, senti ao pensar que naquele instante a enorme lagarta-trenzinho, estampando um sorriso delirante no rosto humanoide, ainda estaria lá, na praça, sozinha e abandonada.

É claro que o sentimento descrito acima admite uma interpretação bastante evidente relacionada ao incontornável desamparo da criança. É o que indica, por exemplo, outra memória, a qual me parece intimamente vinculada a esta mesma que acabo de relatar, porém na qual me vejo sozinho dentro de uma espécie de carrossel dando voltas e voltas, cada vez mais tonto e chorando desesperadamente por minha mãe, que por sua vez me assiste às margens do brinquedo e só aparece a cada vez que o ciclo se completa.

O que pretendo ressaltar aqui expondo estas memórias infantis, elas que são sempre tão determinantes para a constituição tanto do passado quanto do presente e, logo, do futuro do sujeito, é o comportamento animista da criança. Esse animismo, que tem muito daquele de certos povos outrora chamados de “primitivos”, foi abordado em detalhe por psicanalistas como Sigmund Freud e Donald Winnicott e, como demonstra Sarane Alexandrian em Um quarto esperando alguém, mesmo nas sociedades ocidentais pode retornar de maneiras não necessariamente nocivas.

É nesse sentido que entendo a observação do escritor argentino César Aira ao dizer que, diferentemente do autor de Ferdydurke (1937), Witold Gombrowicz, que teria permanecido adolescente, ele — isto é, César Aira — manteve a criança no adulto, algo próximo do que foi mais de uma vez apontado por André Breton com relação a si mesmo[3]. Pois em seus romances curtos Aira não apenas joga com as coisas, mas permite que elas sejam investidas de alma, de ânimo, enfim e lembrando de Saint-Pol-Roux, de velocidades, como aquelas dos desenhos animados.

Esse investimento somente pode originar-se na passagem que a linguagem faz pelo corpo, não?

Esquematizando o corpo humano como um tubo, poderíamos pensar na linguagem como um trapo que o atravessa fazendo ruído, e cujo ruído consiste na realidade apreendida como vinda de fora e de dentro, simultaneamente. Incrementando a metáfora, poderíamos assim formular o princípio da cuíca.

A cuíca emite um som bastante característico, similar a uma voz, a um rugido, a um grito. Esse som é obtido quando a haste de bambu afixada na pele do instrumento é friccionada com um trapo úmido, normalmente gorgurão molhado com água[4]. Aplicando esse funcionamento ao ser humano tubular que esquematizamos acima, teríamos de nos perguntar se a linguagem fricciona o interior ou o exterior do falante e ouvinte, ou ambos ao mesmo tempo, transformando assim seu entorno e seu interno. No entanto, considerando a cuíca como um todo, e não apenas a haste de bambu que lhe serve de cerne fundamental — cuja vibração em certa medida cria sua voz e alma —, ela efetivamente parece imitar um ser humano esquemático. Porém, há uma diferença crucial, que se encontraria menos na morfologia do instrumento e mais na mão que fricciona o tecido.

A esta altura, uma vez que chegamos à voz das coisas e sua trama, não posso deixar de fazer um desvio para sinalizar uma pequena coincidência.

Um dia antes de traduzir o parágrafo em que Sarane Alexandrian menciona o romance As coisas vêem (1913), de Edouard Estaunié, eu vinha lendo o Pequeno Manual de Procedimentos (Arte e Letra, 2007), do já citado César Aira, onde esbarrei com A prosopopeia[5], escrito que deixei para estudar com atenção mais tarde, mas do qual não pude deixar de percorrer as primeiras linhas, onde Aira anota que temos bons motivos para acreditar que os objetos não vão falar e que confiamos em sua discrição. Como parece que esse trecho de A prosopopeia se relaciona diretamente com Um quarto esperando alguém, o citamos por extenso:

Os objetos podem ser testemunhas presenciais, tão inúteis como insubstituíveis, por
duas razões básicas: a primeira é que, na certeza que temos (não são poucos os
motivos) de que jamais abrirão a boca, não vacilamos em realizar em sua
presença nossos atos mais secretos (…).

E, a seguir, lembramos do que anota Alexandrian sobre o “romance objetivo”:

Trata-se de um romance sem personagens, mas não destituído de intriga, em que a história toda é contada unicamente por objetos. (…) Os objetos, que o homem acredita dominar, funcionam ao seu redor como sinais ou informantes da polícia.

Estes atos secretos evocados pelo autor d’O congresso de literatura (Fósforo, 2024) me fazem lembrar que tenho em minha biblioteca uma primeira edição daquele que suponho ser o primeiro tratado jamais publicado sobre a margarina: A margarina e a manteiga artificial [La Margarine et Le Beurre Artificiel] (1889), de Charles Girard e Jacques de Brevans. O colofão desta obra singular indica ainda outras publicadas na coleção Pequena biblioteca médica. Dentre elas há uma que, quando ajeitava A margarina e a manteiga artificial na estante um domingo desses, me chamou especialmente a atenção: Memórias de um estômago (1874), título que bem poderia figurar nos Sessenta enredos de romances bem na moda hoje em dia e noite (2000), de Alexandrian, e cuja sinopse diz o seguinte:

O autor supõe um estômago escrevendo sua própria biografia, com todas as
peripécias de sua infância, juventude e idade adulta, todas as provações que ele
teve de enfrentar nas diferentes épocas da vida do sujeito ao qual pertencia.

A meus ouvidos essa resenha é mais do que convincente e eu ficaria bastante satisfeito se um dia tivesse em minha biblioteca estas Memórias ao lado do tratado de Girard e Brevans. Entretanto, além da discussão médico-filosófica que o anúncio poderia suscitar — afinal, no discurso que o apresenta, órgão e sujeito são separados (“do sujeito ao qual pertencia”), o que revela uma certa visão de mundo aí implícita —, há outro detalhe interessante.

Aquele Memórias de um estômago, escrito em francês, é atribuído ao doutor C.-H. Gros. Ora, não é necessário investigar muito para descobrir que o livro foi publicado pela primeira vez em inglês por Sydney Whiting em 1850.

Antes de mais nada, isso seria motivo de elogios ao doutor e tradutor Gros, que naquele anúncio de 1889 fora apresentado como autor, não fosse o subtítulo que consta na folha de rosto do livro em questão, e que é omisso no anúncio publicado no tratado de margarina de Girard e Brevans: Memórias de um estômago escritas por ele mesmo, para o Benefício de todos aqueles que comem e que leem, e editadas por um ministro do interior.

A esta altura já terá entendido onde quero chegar?

Entramos em uma pequena biblioteca, depois em uma “pequena biblioteca médica”, e agora estamos na folha que serve de rosto a um livro que muito bem poderia ser tanto esboçado por Sarane Alexandrian quanto escrito por César Aira, e que talvez um dia venha a ser meu ou seu. Isso porque acabamos de ouvir falar de um benevolente estômago, que não só escreveu suas memórias para o bem dos que alimentam corpo e alma, mas conseguiu que um ministro — e justamente o do interior, como não poderia deixar de ser sendo o autor um órgão — as ministrasse ao público.

Assim, e para encerrar esta quina, voltamos ao “dadasófo” Raoul Hausmann, iniciador de Sarane Alexandrian. Em Perspectivas ou fim do neodadaísmo [Aussichten oder Ende des Neodadaismus] (1962), Hausmann afirma, ecoando Hegel, que “todas as invenções são feitas quando se tornam necessárias”. Pervertendo ligeiramente esta asserção, poderíamos supor que não só toda invenção, mas toda descoberta, e mesmo todo encontro, se dá quando necessário e quando os envolvidos estão prontos e propícios para tal.

Assim foi que na Universidade Federal do Paraná conheci o professor Marcel Pauluk; em Lyon, o bar Trokson e as bandas de Limoges; e há alguns meses, em um velho edifício da rua Riachuelo — onde entrei com meu pai há quase um quarto de século —, Felipe Moreno, editor da Casatrês, cujo encontro foi decisivo para a elaboração desta quina sobre Sarane Alexandrian que agora chega ao fim, afirmando em síntese que:

O encontro opera como uma espécie de catalisador: os potenciais se somam e, juntos — isto é, subsumidos —, permitem o aparecimento de um ponto de inflexão passando, então, a fazer parte de um acontecimento.

E a mão no tecido? E as borboletas na barriga?

Natan Schäfer


NOTAS

[1] Nota do tradutor: Em francês Danger de vie, romance de Sarane Alexandrian publicado pela editora Denoël em 1964.

[2] N. do t.: André Breton se refere ao romance Die andere Seite (1909), de Alfred Kubin, do qual os surrealista de Paris publicaram um fragmento no primeiro número da revista La Brèche em 1 de outubro de 1961.

[3] N. do t.: Ainda que André Breton sempre tenha sido bastante reservado com relação às suas memórias de infância, em vários momentos externou a importância que conferia a ela, supondo no Manifesto do surrealismo (1924) que “talvez seja a infância o que mais se aproxima da ‘verdadeira vida’”. Em Um no outro (Contravento Editorial, 2022), André Breton afirma que “felizmente, a recente publicação de trabalhos de John Huizinga faz com que toda essa pegajosa turma do ‘você não tem vergonha, nessa idade’ volte para sua concha carcomida. (…) Fechar-se ao jogo — ao menos ao jogo de imaginação —, como é prescrito pela disciplina adulta, bem vemos que é solapar em si mesmo o melhor do ser humano”. Em Não esqueça isso, não esqueça de nada [Rappelez-vous cela, rappelez-vous bien tout](Gallimard, 2015), em que Radovan Ivšić reúne suas memórias sobre os últimos dias de Breton, ele por sua vez atribui a este último o seguinte comentário: “[fulano] não permaneceu criança feito você e eu”.

[4] É curioso notar que, em termos de morfologia e funcionamento, a cuíca é o contrário do theremin, a partir do qual se obtém som como que por ameaça de contato, prescindindo do contato direto com a haste que compõe o instrumento. [5] Texto escrito a partir do convite feito por Alberto Giordano a César Aira e lido por este último no dia 27 de outubro de 1995 diante de integrantes do Grupo de Estudios de Teoría Literaria da Universidad Nacional de Rosario.

[5] Texto escrito a partir do convite feito por Alberto Giordano a César Aira e lido por este último no dia 27 de outubro de 1995 diante de integrantes do Grupo de Estudios de Teoría Literaria da Universidad Nacional de Rosario.


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