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A luta desigual segundo G.H

por Leopoldo Cavalcante
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I. O enredo

Em A Paixão Segundo G.H, de Clarice Lispector, uma senhora escultora ia arrumar o quarto da empregada que se foi há seis meses. Janair, a empregada, já havia previamente limpado e exposto o caiado das paredes. Numa virada de rosto, G.H. observa uma barata, seu maior medo. Disso, epifania. Nessa espiral interna, somos tragados.

Logo no início, a narradora diz ter perdido uma terceira perna. Direto de A paixão segundo G.H:

Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé estável. Essa terceira perna eu perdi. E voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca tive: apenas as duas pernas. Sei que somente com duas pernas é que posso caminhar. Mas a ausência inútil da terceira me faz falta e me assusta, era ela que fazia de mim uma coisa encontrável por mim mesma, e sem sequer precisar me procurar.

II. A terceira perna

Triciclos têm três rodas. Cada qual serve para a constituição do objeto próprio que é o triciclo. Sem uma das rodas, viraria uma bicicleta – infantil, mas uma bicicleta. Nesse ponto, a linguagem, por meio de um prefixo, é criadora de essência; ou seja, ao designar, cria e solidifica.

O animal humano foge de classificações. Não somos apenas bípedes sem pelos, ou detentores de um polegar opositor. Diferenciamo-nos por um sutil processo de reconhecimento externo. Minha voz é diferente da sua; o meu rosto é diferente do seu rosto. Logo, sou diferente. Mas quem sou? e essa questão aflige o ser de G.H.

Como um espelho, o ser, mesmo clamando diferenciar-se, constitui-se pelo amálgama de seres que não o são, refletindo – ou copiando – cada poro indecifrável de um outro repleto de assessórios. Nesse retalho de essências, organizamos desejos, percepções e esperança. Cremos ser por pensarmos, quando indispostos, em nós. E de tanto crer, cremo-nos. Eis a terceira perna.

III. A dúvida de ser

Ingmar Bergman, em Luz de Inverno (1963), traz a questão da dúvida em seu caráter maior. No calvário, quando mutilado, humilhado, entronado, Jesus Cristo sofre a pior das dores. Não a de ter as pernas e os braços amarrados à madeira. Não a de ter pregos atravessando suas mãos e seus pés. A dor de Cristo é de duvidar, por um instante, em ser. “[…] Por que me abandonaste?” Para Deus, que é todo Verbo, desconfiar de ser-se é todo desespero. A Ele, não é dado o luxo da terceira perna assessória.

Na Paixão, a luta entre ser e o nada é justa. São iguais em magnitude digladiando-se. Na paixão de G.H., com os pés no chão, a luta é desigual. Ao deixar de crer-nos, caímos. Retirando o véu de retalhos fundador de nós, percebemos o todo ausente que nos constitui.

A epifania (ἐπιφάνεια[1]) de G.H. é a consideração abrupta da fragilidade do ser. A terceira perna, não essencial, mas reconfortante, desaparecia apenas em consequência de estar-se indisposto, quando pusemo-nos a fazer metafísica. E isso, um homem na janela de seu quarto já havia se desconfiado.

IV. Os incapazes

Como humanos, somos incapazes de viver só de linguagem. Existe, e isso já se fala há milênios, um abismo entre o dito e o não-dito. A palavra, enquanto tal, não expressa por todo o significado das coisas. G.H., em seus devâneios, chega a dizer que as coisas que pensa sem palavras estavam sendo arrancadas por uma ação sem palavras. Ela tinha consciência da própria formatação vaga de si e das transformações internas e silenciosas dentro de nós mesmos.

Só que em Clarice Lispector, temos um todo oco. A vida de fora entra em um ser oco. Como um eco, as vozes e as histórias ressoam dentro de barreiras indefiníveis. Nós, como humanos, na visão de Clarice, somos apenas um não-ser. Ou seja, eu sou por não ter nada dentro de mim que me faça ser. Uma definição negativa que, de certa maneira, facilita a apreensão da existência por retirar o peso de explicar o que se é.

Dentro das pessoas ocas, como Clarice e vários poetas, a linguagem assume o remo na criação da vida. A vida externa, por ser fonte primeira de vida, é apreendida nos ruídos do mundo e refletem-se no oco que os captar. Os signficados e as histórias e os dramas de fora criam o de dentro. Não é preciso – tampouco aconselhável – um motivo para existir, ou uma razão. Apenas deixar-se ser a antena do mundo.

V. A agonia

Ao ser uma antena, agonizamos. No sentido literal da palavra. Agonia é luta. O ser que agoniza é o ser que está lutando. Nossa evolução semántica levou-nos a entender agonia como um sentimento interno. Uma vantagem, na verdade. A luta é interna. Primordialmente dentro dos ocos, das antenas.

Ruídos atrapalham a percepção das coisas. Sem as coisas definidas, estamos em eterno mar aberto, flutuando. A metáfora é válida até no relato de G.H., que utiliza bastante a figura de tábua solta sobre a água, sendo “água” a “mudez”, a ausência de palavras. Repito: ao ser uma antena, agonizamos.

A existencialistas de várias correntes – inclusive a cristã -, essa agonia é positiva. Auxilia a deixar a vida em um ponto de incerteza e abertura. Àquela visão, estamos em realidades intransponíveis. Ser em negativa, não-ser, é a maneira mais efetiva e racional de ser. E aí, vai de cada um.

VI. Conclusão

Ao perder a terceira perna, G.H teve a epifania da eterna ressureição enquanto ser vivo. Ao não-ser, retomamos a vida e revivemos a cada instante. A dúvida em que vivemos após ressuscitar seria apenas a consequência de estar mais perto do nada do ser, e, dessa forma, da essência mesma do ser. Acontece que, talvez, não possamos viver assim.

A luta desigual entre o ser e o não-ser na vida humana é agonia. Se é boa ou ruim, a agonia, vai depender de quem a vive e de como a vive. É, no limite, uma escolha pessoal de dar significado ou não à vida. De deixar de ser oco para inserir algo que abafe os ruídos e segure a entrada dos dilemas. Esse algo pode aparecer de qualquer tamanho ou formato; de qualquer credo ou razão. Só que ele será, por definição, o que desqualificará a antena dentro de nós como captador geral; ele servirá de filtro – mesmo que com alguns buracos – para o mundo.

A negação da negação seria uma outra conversa, um outro texto. Para um brasileiro metido à metafísica e na literatura com uma visão oposta a de G.H., recomendo Juliano Garcia Pessanha e seu “Recusa do não-lugar”, o não-G.H.

Cuidado com as baratas.


Leopoldo Cavalcante nasceu em Fortaleza, Ceará. É editor da revista Aboio. Foi colunista de cultura no jornal Focus. Escreve sem compromisso no @resenhador_, Instagram literário – ou diário irregular de leituras.

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