Daniel Giotti é professor de Direito, mas gosta mesmo é de escrever. Organizou o livro de poesia “Inverso Direito” e contribui com crônicas e ensaios em jornais e revistas brasileiras. Faz resenhas sobre música, literatura e cinema no podcast “PapoProsaPoesia” e no perfil do instragram de mesmo nome.
Neste ano, comemora-se o centenário da Semana de Arte Moderna, mas pouca gente, inclusive a que se considera mais letrada, sabe o que se passou (ou não) em 1922.
Ruy Castro, na minha opinião o maior dos biógrafos brasileiros, e um dos maiores de nossos escritores, denuncia duas obviedades há vários artigos e em sua dupla mais recente de livros. A primeira é que o modernismo no Brasil ocorria no Rio desde o início do século XX. E por lá mesmo é que deveria ocorrer, naquela Metrópole à beira-mar, capital política e intelectual do Brasil, pois “em 1920, por exemplo, quando Mário de Andrade, paramentado de Filho de Maria acompanhava procissões na Barra Funda, eles [os escritores modernistas cariocas] já saiam às ruas vestidos para o crime”, como lembra em O Leitor Apaixonado (Companhia das Letras, 2009).
Muito do que se cultua como avanço estético em Oswald de Andrade, “o estilo de frases rápidas, curtas e telegráficas”, já existia no cronista Orestes Barbosa. Adelino Magalhães, por seu turno, ensaiava invenções como o fluxo de consciência, tendo “ousadias estruturais protojoyceanas”, no dizer também de Ruy Castro, desta vez em As Vozes da Metrópole: uma antologia do Rio nos Anos 20 (Companhia das Letras, 2021). Interessante é que Orestes Barbosa e Adelino Magalhães compartilham com Oswald de Andrade o fato de não serem lidos atualmente, embora, diferentemente deste último, considerado pai da Semana de Arte Moderna, aqueles deixaram de ser publicados há muito.
A segunda obviedade: a Semana de Arte Moderna foi um retumbante fracasso, porque pouca gente se importou com ela e se não fosse a participação de Heitor Villa-Lobos no evento, com dinheiro público garantido pelo governo paulista de Washington Luiz, teria sido ainda menos importante, como pontual o biógrafo em Metrópole à beira-mar (Companhia das Letras, 2019). Mas vem cá, pouca gente se importara porque era vanguarda, não acha? Pois é, se fosse isso, o vanguardismo explicaria a pouca audiência ao evento, só que não fora essa a causa primeira: a “Semana” incomodou mais pelo provincianismo que ainda gracejava em São Paulo do que por qualquer outra coisa.
Prova disso é que um dos precursores da “Semana” foi o carioca Di Cavalcanti, que, no ano de 1921, recebido por Paulo Prado em sua mansão em Higienópolis, expôs-lhe a ideia de uma série de saraus de arte moderna, envolvendo poesia, literatura, escultura e pintura. Tendo Paulo Prado gostado do que ouviu, sugeriu ao interlocutor que o evento se desse em São Paulo, o que foi também do agrado do pintor, imaginando-o como algo para “meter os estribos na barriga da burguesiazinha paulistana”.
No ano seguinte, Anita Malfatti, Mário e Oswald de Andrade, circundados por Ribeiro Couto, Guilherme de Almeida e Cândido Motta Filho, entre outros, se reuniram e fizeram o evento, contando com ajuda do “imortal” Graça Aranha, que alguns anos depois faria virulento discurso na Academia Brasileira de Letras (ABL) exaltando o modernismo e se posicionando contra os “parnasianos” e “helenos”.
Neste ponto, aliás, resta a dúvida: Graça Aranha foi um visionário ou apenas se aproveitou da “nova turma” para sair do ostracismo literário de sempre, ele, um dos fundadores da ABL sem ter sequer um único livro publicado? A verdade é que faltavam nomes para as quarenta cadeiras. A aproximação dos vanguardista pareceu-lhe uma oportunidade para revitalizar a Casa de Machado de Assis, ainda lar de parnasianos como Coelho Neto. E o plano, ao fim e ao cabo, sucedera. Avidamente, alguns dos modernistas se juntaram à ABL.
Se eu fosse mexer neste vespeiro, poderia invocar as palavras do grande constitucionalista José Afonso da Silva que, na sua obra A Faculdade e meu itinerário Constitucional (Malheiros Editores, 2007), encontrou em livros do já citado ex-modernista Cândido Motta Filho, tornado ministro do Supremo Tribunal Federal na década de 1960, laivos de conservadorismo no seu conceito de povo. Claro que os homens são eles e suas circunstâncias, de modo que qualquer resgate histórico deve ser contextualizado.
Fica, porém, no ar a questão sobre quem seriam os verdadeiros modernistas do Brasil: aqueles cariocas anteriores a 1922, os paulistas da Semana de Arte Moderna ou os escritores nordestinos da geração subsequente, do quilate de Graciliano Ramos, Jorge Amado e José Lins do Rego, esses sim, ao que parece, nunca deixados escanteados nas prateleiras de bibliotecas e livrarias. Recuperando José Guilherme Merquior em Formalismo & Tradição Moderna: o problema da arte na crise da cultura (É realizações, 2015), um dos nossos autores mais modernos, mesmo tanto tempo depois de sua morte, cabe sua observação quando do cinquentenário da Semana de Arte Moderna: se quisermos ultrapassar o anedótico devemos entender qual a verdadeira personalidade estilística da literatura. E, digo eu, da arte modernista em geral.
Foto de Luísa Machado.