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clarice niskier

por Anna Carolina Rizzon
anna carolina rizzon

Consigo contar nos dedos quantas vezes, até agora, exultei de tal forma que não houvesse espaço em meu corpo pr’outra coisa além de contentamento. Foram quatro: quando assisti ao musical Les Misérables, em outubro de 2017, no Teatro Renault; quando assisti à adaptação d’A Pequena Sereia, em maio de 2018, no Teatro Santander; quando assisti ao monólogo A Alma Imoral, em junho de 2018, no Teatro Eva Herz; e quando assisti à peça As Cangaceiras, ontem, no Teatro do Sesi.

Não me lembro da primeira vez que fui ao teatro, mas a primeira ida ao teatro da qual me lembro foi para ver uma adaptação de Pocahontas — data e local anuviados pelas décadas de distância. Tinha no máximo 6 anos. Minha mãe ainda guarda a foto que tirei junto ao elenco. Não me lembro da peça, em si, mal e mal recordo estar presente, mas sei que gostei de ter ido. A segunda lembrança é de uma peça de Maria Clara Machado, A Bruxinha que Era Boa. Fui com uma amiga e a mãe da amiga. Tampouco tinha mais que 6 anos. Lembro de ter sentado no alto e sei que gostei da peça. Depois disso, não lembro mais.

Também cabem nos dedos quantas vezes fui ao teatro.

É uma relação ainda curiosa pra mim. Comecei a ler textos dramatúrgicos quando vi que precisava reaprender a escrever diálogos. Continuei lendo porque me interesso muito pela ocupação de atriz — desde que exercida por qualquer outra mulher que não eu. Eis que, eventualmente, cheguei a uma obra de David Mamet e aprendi a escrever literatura mais com ele, falando de teatro, do que com qualquer um que falasse de Literatura. Pouco a pouco me tornei consciente do apreço pela dramaturgia, mas nunca relacionei a um fascínio pelo teatro, per se.

Li The Crucible, de Arthur Miller, em epub; li Cat on a Hot Tin Roof, de Tennessee Williams, em PDF; li Quem Tem Medo de Virginia Woolf, de Edward Albee, numa edição antiga, que pertencia à coleção Teatro Vivo da Abril; li Esperando Godot, de Samuel Beckett, no kindle. Nunca assisti a nenhuma encenação dessas peças — ao vivo ou pela internet. Não me fazia falta. Era um estudo.

“Ir ao teatro” não era um hobby, ou menos que isso, até, uma pretensão.

Paralelamente, A Pele de Vênus, que se passa, em sua totalidade, durante a audição da protagonista para uma adaptação de A Vênus das Peles, do Sacher-Masoch, já figurava como o segundo filme que eu mais assisti na vida. Algum fascínio, claro, existia, mas teria a ver com o teatro, resultado, ou com fazer teatro, arte?

Então vim a São Paulo para ver Les Misérables. Essa, sim, eu sabia que queria assistir no teatro. Ao vivo. Duas fantasias — viver em São Paulo, assistir Les Mis ao vivo — que, até o momento em que ocorreram, eram só aquelas impossibilidades a que nos agarramos para nos mantermos desejantes e, eventualmente, sair da cama. Fui com uma amiga. Chorei do começo ao fim e nos intervalos. Toda felicidade anterior já não parecia felicidade — parecia uma tentativa de felicidade. Era o espetáculo? Era o hype? Era o teatro? Era o teatro?

Sei lá. Foi mais aquilo — o conjunto indefinível — do que eu, e não se repetiria. Disso eu tinha certeza.

Seis meses depois, me mudei pro horizonte do mundo — São Paulo. A mesma amiga que me acompanhou ao Les Mis, que me hospedou na época e com quem eu dividia morada então, queria levar a prima para ver a adaptação d’A Pequena Sereia. Me chamou pra ir junto. Não chorei nos intervalos, mas chorei no começo, no fim e nos interlúdios. A segunda peça não é mais novidade, é uma peça, e todo teatro por dentro é o mesmo, embora tentem não se parecer, mas o arrebatamento veio, tão potente quanto o anterior, brotando da mesma raiz, envolvendo o mesmo corpo.

Era o teatro.

É reação. Desses consensos tão viscerais que se desconhece a origem: arte é reação. Recém-chegada à cidade, eu só reagia; eu só esperava que me dissessem o que fazer, aonde ir, o que comer, o que conhecer, do que desfrutar.

A Alma Imoral foi uma manifestação da consciência. A primeira — e, por enquanto, a única — peça que ninguém me propôs assistir, ninguém me convidou para assistir. Desconhecia Clarice Niskier. Mas o cartaz estava à entrada da Livraria Cultura e, ora, se deixava que me dissessem como viver minha vida, por que não deixar, também, que me digam como é minha alma?

Talvez tenha aprendido a amar o teatro enquanto aprendia a amar São Paulo. Não me passa despercebido o paralelo entre estar só, lendo textos dramatúrgicos, e estar acompanhada, direta ou indiretamente, assistindo a peças de teatro; entre estar rígida de angústia, porque tudo é fantasia, e explodir em prantos, porque não há fibra que resista à exultação.

Mas o deslumbramento com São Paulo vai acabar um dia, quando deixarei de escrever sobre. Será preciso pensar noutras coisas, conjurar outros nomes, culpar outras circunstâncias. Será preciso ocupar a mente com outros desesperos, o corpo com outras mazelas.

E, até ontem, tinha medo de que o teatro ficasse pelo caminho, esquecido, junto às alegrias que já não acesso. Ainda cabem nos dedos as vezes em que fui ao teatro. Não por falta de vontade, por falta de [re]ação. Mas uma amiga me chamou pr’assistir As Cangaceiras. E veio o choro no fim, o arrebatamento, a certeza de que se ramifica pelas novas condições. O pertencimento; o entendimento, enfim.

Minha alma se desorienta, eu me norteio pela música, pela pintura, pelos filmes, pela fotografia.

Minha alma grita, eu escrevo.

Minha alma esvazia, eu encho de teatro.


Anna Carolina Rizzon nasceu no Rio de Janeiro, cresceu em Teresópolis e se exilou em São Paulo. É incompetente em diversos segmentos artísticos, mas insiste mesmo assim. Especialmente na escrita. Colabora com a Fazia Poesia e a Revista Úrsula e posta aleatoriedades nos blogs vOltas h a v e r e s.

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