victor hugo turezo é jornalista e nasceu em curitiba-pr. publicou minha massa encefálica despenca como se de um desfiladeiro (patuá, 2017), quando vaga-lumes morrem no escuro (obsoletos, 2018) e taquigrafia da doença (kotter, 2019). traduziu, junto de natália agra, bosque musical (corsário-satã, 2018), plaquete com poemas de alejandra pizarnik. edita a revista obsoletos desde 2018.
o hoje seria apenas um sonho embaçado amanhã.
josé falero
dizer o momento da aparição de alejandra pizarnik em minha trajetória incorre em um ato inverossímil. é possível que, em uma ocasião diversa, já tenha cruzado a sua palavra em outros livros e notas; talvez em despretensiosas conversas em dias absortos que a tenham citado indiretamente e bebido em sua forma sem nomeá-la — como quando passamos por uma pétala que não nos chama bem a atenção pelo motivo de um alumbramento direcionado ao que decisoriamente procuramos. mas é do que se acimenta na lembrança que as relações se significam. e a história quimérica dá lugar à suspeita possível: a folha, a obra que se aplaina aos dedos esticados, encontra-se elaborada no rio corrente da letra. de mai y juanca, ¡qué lo disfrutes! buenos aires, 30/xii/2015. no livro ocre, a dedicatória no pé da primeira página revela a marca do compromisso. grafado em tinta azul, o convite à leitura soa como uma convocação inadiável. no apartamento de três cômodos, copos feitos de plástico de iogurte e requeijão. ona, a cachorra ingente — pletórica; cheia de baba no canto da boca, a dormir no espaço junto com nosotros. cariño: colchões velhos, quase inúteis. cenário suspenso, contumaz, latino-americano; de janelas justapostas bastante pequenas e paredes esfoladas. ali me deram alejandra, a que muere de muerte lejana / la que ama al viento. e eu não soube de imediato a sua importância. jacques lacan escreveu que não se deve compreender muito rápido. no entanto, quando se tem 22 anos o que se sublinha do mundo é a sua dimensão intocável; ou seja, aquilo que não estamos prontos para conhecer. de tal sorte que seria espantoso se a tivesse atingido prontamente. dessa apresentação orlada pela reunião de um afeto simples e estrangeiro, de um mimo — resquício do muito do que vivemos em duas semanas —, engendrou-se a coisa a ser reconhecida: antes imagem descampada, sem contorno e traço, a poeta que não era, porque ainda não havia adentrado meu imaginário, tornou-se, fez-se. simone weil: entre todas as coisas, só o que vem de fora, gratuitamente, de surpresa, como um dom do destino, sem que tenhamos procurado por isso, é alegria pura. como por milagre e consequência de uma litania desrecalcada e muda, surge o rosto replicado e desadormecido do dito que mora no poema; e apresenta-se — à guisa de afago — ao corpo que não espera.
costura-se, então, o verbo ao cenário. li-a dentro do vagão. buenos aires-rosario sur. barracos adornavam a margem da ferrovia. desabitações amarelecidas compunham o espaço e a luz oferecida pelo crepúsculo tinha algo de aliciante. sophya de mello breyner andressen, em um excerto de texto sobre «a arte poética», analogiza acerca de uma ânfora que estabelece certa ligação entre ela e o sol — do amor originário das coisas que se dispõem e se reúnem, concebido por um fascínio conjugado que não se apresenta, mas que se conjectura, e que é urdido na sensibilidade e na investigação da experiência. se há potência cambiante na literatura, claro enigma a ser desvelado, é esta: o olho que lê e se ausenta da página para compô-la, depressa, no esquadro da paisagem. devo crer, por isso, que o fundante liame de alejandra com a minha história parte de um embevecimento que resulta em nó — criado através de como ela me foi apresentada e do singular construído na sublime confecção do mundo que se mostrava quando percorri o começo de sua obra pela primeira vez.
penso que há, nos trabalhos de alejandra, a condição criadora para uma ética de atingimento e de tentativa de domínio da morte. por composição decomposta no texto, ela se dá, quem sabe — e aqui me arrisco sobejamente —, pelo estado surtológico ao qual seu discurso se incute. palavra-devir-conceito fabricada pelo poeta e ensaísta marcelo ariel no escrito «uma conversa infinita onde espinosa, o africano, explica as estratégias insurrecionais do jaguar-orquídea», ela tem a dimensão, segundo o agente, de explicitar a etiologia das noções mais exatas do ser. aproprio-me da invenção para determinar a potência de uma conduta operada, em sua exposição traduzível, do que se entende da complexidade do que significa, em alejandra, a morte em suas atuações subjetivas: la muerte es una cosa, és un cuerpo poético que alienta en el lugar de mi nacimiento. retira-se o véu do motivo de sua intenção para escancará-lo no poema, lugar de metáfora, e se produz a vida da morte pelo ensejo de conceber a sua causa. ora, se a morte é um corpo poético e aparece como dispositivo de substituição à origem, ela é, acima de tudo, um significante que se propõe a dar sentido ao desejo da autora, encerrado em ato quando ela se suicidou aos 36 anos. porém, antes houve o esforço de regulá-lo e clivá-lo pela escrita, perscrutando-o como quem acha que pode cavar imensamente a ruptura e ali se ajeitar. ato contínuo, como nos quadros de chaïm soutine, onde o pictórico tem o dever de esmorecer quem o cria e observa e tudo o que se vê é um grito que desce, afunila-se e se transverte em uma quietude desarranjada e incômoda, alejandra também o faz, mas sob a radicalização das funções do mal-estar polissêmico da linguagem que a acompanha, organizadas em seus diários: escribir es mi mayor ingenuidad, es querer contener lo que se desborda. ou ainda: ¿por qué escribo? para asombrarme, yo, que nada sé de las palabras. o esforço de dar conta do próprio enunciado e conjugá-lo ao sentido — e de entendê-lo como caminho de descoberta, exposição e espanto — parece não ter fim para ela. algo sempre falta na linguagem e a poeta a toma não por uma densidade que se estatela sobre os membros e avança ao contínuo dos dias, imobilizando-a; mas como fundamento cosmológico e proposição de um emaranhamento que a movimenta; que a esgarça, aparentando produzir um duplo efeito em sua composição: de dissidência e obstinação — condições de exercício em seu laboratório pessoal: ilha de memória e relato.
escrever o que não se recupera na pálpebra. voltei ao cenário oito anos depois. andei algum tempo pela calle montevideo esperando encontrar o lastro de sua passagem por ali. o café que você frequentava na avenida corrientes agora é uma pizzaria. apagam-se as pegadas, as pessoas e os séculos. há muitos anos anotei um bilhete a um amigo: procuro o livro de uma poeta que jamais existiu. talvez delirasse. roberto bolaño estava próximo ainda. e de cesárea tinajero muito comentávamos em círculo. hoje percebo, não sem salpicar em mim algo de derrisório — pois é necessário acreditar que estamos sempre em busca de um livro escrito que jamais existiu e existirá: aquele da tautologia que ainda não incorremos, i.e., aquilo que não pode ser narrado —, que não estava atrás de um registro, de uma inscrição; mas da linguagem que se procura em si.
março de 2023
Desenho de Ariyoshi Kondo.