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Uma aposta na ternura

por Florencia Guzzetti
Foto de Luísa Machado para ilustrar o texto "uma aposta na ternura", de Florencia Guzzetti.

Florencia Guzzetti é argentina e atualmente reside em Porto, Portugal, uma cidade que lhe apaixonou enormemente pelas ruas, o céu, a proximidade com o mar. Estudou Literatura em Buenos Aires e agora pensa sobre a pornografia e a suas relações com os feminismos. Gosta imensamente de ler e escrever e está muito motivada com o desafio de fazê-lo numa outra língua tão linda como é o português.


Não vê
como as coisas são pequenas.
Delírio de grandeza
no olhar.

Miopia, Irene Gruss

Una letra familiar (sem tradução para o português), de Irene Gruss, é uma viagem ao passado. Ao passado da autora, sim – seu jardim de infância, sua família, o cheiro de bolinhos de maçã que a fazia se sentir em casa –, mas também a um passado compartilhado: a um modo de ver, de se relacionar, a esse modo profundo e leve de habitar o mundo que é a infância.

Se eu tivesse que defini-lo de alguma forma, poderia dizer que é uma autobiografia fragmentada, onde cada seção é um texto em si que recupera algum fato importante da vida da escritora. Um livro que começa nos primeiros anos de escola e que passa pelos verões com a família, passeios ao cinema, tardes com amigos e termina aos 15 anos, aquela festa que foi apesar da sua vontade. A leitura leva-nos com a mesma atenção desde a praia até à tarde em que seu avô morreu [1], desde quando vai pela primeira vez ao campo da Boca e come um cachorro-quente até quando gosta do “novo” na escola, desde a viagem à lua assistida pela TV até quando ela menstrua pela primeira vez, de eventos imensos a pequenos fragmentos cotidianos. Não há hierarquia que ordene os fatos, pois como diz Peri Rossi em seu poema Infância: Lá, no início / todas as coisas estavam juntas.

É que ser criança lhe dá uma grande vantagem: estar livre do peso da pretensão e a exigência que nos vem, como um contrato que não assinamos, quando nos tornamos adultos. Ela tem a liberdade de dizer o que quiser, de gritar o que é politicamente incorreto, de ser caprichosa, fiel e tenaz apenas ao seu desejo.

É um texto no qual abundam cheiros, cores, texturas. Um livro poético na totalidade e em cada pequena peça. Irene Gruss é, antes de tudo, uma poeta. E a simplicidade que ela alcança neste texto é o que o torna brilhante, no sentido mais literal do termo: ilumina recantos, fragmentos, emoções, tanto de sua vida quanto de quem a lê. Imediatamente nos encontramos imersos naquelas histórias que são estrangeiras apenas em seus detalhes (nomes, cenários, paisagens) e simpatizamos com aquele olhar sagaz e fascinado, com aquele sentimento intenso e despojado que a narradora tem.

Com delírios de grandeza no olhar e com palavras que não medem o tamanho das coisas, o livro nos revela aquilo que é tão claro e brutal que todos nós, nessa fase da vida, vimos sem saber. Com pequenas cenas e gestos, a narradora consegue nos levar às nossas próprias memórias, ao nosso aquele-mundo que, apesar de diferir nos detalhes, compartilha o macro: o olhar. 

A jóia do livro é ser escrito desde a infância. “Quando eu for escritora vou contar isso”, diz ela com ingenuidade e ternura, depois de já ter contado tudo, de já ter dito o que queria dizer, como quem não quer a coisa (“A flor de cardo tem a cor mais linda. É tão linda quanto o girassol. Penso no que deve ter custado crescer na areia e, ainda por cima, com aquele caule feio dar aquela flor charmosa”). É que ser criança lhe dá uma grande vantagem: estar livre do peso da pretensão e a exigência que nos vem, como um contrato que não assinamos, quando nos tornamos adultos. Ela tem a liberdade de dizer o que quiser, de gritar o que é politicamente incorreto, de ser caprichosa, fiel e tenaz apenas ao seu desejo.

Já tinha terminado o livro quando me deparei com uma entrevista [2] em que Irene Gruss afirma que “o que mais fortemente te sustenta é a ternura”, e aí entendi o sorriso terno e alegre que me acompanhou durante a leitura. Era um sorriso constante, pois se renovava a cada palavra que a narradora aprendia: “Hoje vieram podar as bananeiras. O paraíso também, então fui para a calçada e olhei os galhos com as folhas, deitados de lado, agonizando. Eu gosto dessa palavra. Selva me disse” / “É como um ritual, eu gosto dessa palavra, meu irmão me disse, embora ele não a use mais” / “Hoje eu tive vontade de chorar o dia todo. Eu não sei o que é, não há nada de errado comigo. ‘É aflição’, diz Fina”. Depois de ler, “agonizar”, “ritual”, “aflição”, “pesar”, “sombrio” ficavam girando na minha cabeça. Junto com a narradora, saboreava as palavras e procurava usá-las sempre que podia, como se fossem um novo brinquedo: com entusiasmo, com apego, com o orgulho de ter encontrado a melhor maneira de nomear um determinado estado. 

[…] só podemos acentuar o sorriso e nos perguntar quando foi que nos enganamos acreditando que alguém mais jovem não pode nos ensinar. Talvez no exato momento em que desaprendemos a ternura?

Determinada, / pegou cada bolha de sabão / e deu-lhe um nome; era / o melhor que sabia fazer até agora, / nomear, e que as coisas / explodissem em sua mão. Essa obsessão pelo nomear também aparece em sua poesia, mas neste livro as palavras não explodem. Ela as enuncia com leveza, ao mesmo tempo que fica fascinada tanto por elas quanto por aqueles que lhe ensinaram. Ela absorve e aprende com tudo o que vê. “Meu irmão me ensina coisas mesmo sendo o mais novo”, diz no início de um capítulo e só podemos acentuar o sorriso e nos perguntar quando foi que nos enganamos acreditando que alguém mais jovem não pode nos ensinar. Talvez no exato momento em que desaprendemos a ternura?

Essa epifania que a narradora sente ao descobrir uma palavra, gera uma sensação espelhada em quem a lê: elas ganham valor, tornam-se mais nítidas, mais afiadas e, de repente, não há outra palavra no mundo que possa descrever melhor essa tristeza que “aflição”. Há também outros momentos igualmente ternos em que ela quer expressar algo para o qual ainda não tem palavras, mas isso não a paralisa, ela ensaia: “Eu não sabia o que fazer. Foi triste e feliz. A fumaça e as faíscas me deixaram estranha, como quando fico estranha com a lua que me olha. Você não sabe o que sentir. É uma emoção que, quando eu escrever, sairá em japonês.”

Paul Valéry dizia que “para um poeta não se trata nunca de dizer ‘chove’, mas de criar a chuva”. As leituras que me convocam são, definitivamente, aquelas que me molham, que deixam minha pele úmida, onde a água cai em todas as direções e não há abrigo possível – e mais importante: não quero que haja. Irene Gruss não nos conta sobre sua infância, mas a repassa e recupera o olhar, lembrando-nos que também fomos capazes dessa inquietação, dessa raiva, dessa surpresa, dessa ternura, e que há tanto a aprender com os mais novos.

Se, como afirma a autora, “a poesia é música mas com boca fechada”, este livro é um álbum terno, alegre, harmônico, luminoso, daqueles que se colocam para acordar devagarinho num domingo de sol.

[1]: Lembro-me de uma vez à tarde que não fomos à praia porque meu avô morreu no jardim da frente. Eu estava brincando com ele para subir nas barras da janela, e de repente ele se cansou e me disse que ia tirar uma soneca. Eu estava de pé ao lado da roseira, então ele veio e se deitou ao meu lado para adormecer acompanhado. Mas minha mãe veio e a vovó Sara entrou e saiu de casa gritando, fazendo um barulho que eu não entendia. Eles vão acordá-lo, disse a mim mesma, ele está assim tão calmo e estão incomodando. E eles me tiraram do jardim e depois não pudemos nem ir para as dunas. Eles gritaram comigo para ficar quieta e caladinha. E meu avô foi embora, porque eu não o vi mais. E agora quando me perguntam eu digo que ele morreu durante a soneca. Ele estava tão calmo, e eles vinham e fodiam com ele o tempo todo. Cobriram com uma grande lona que levamos para a praia para dormirmos juntos e me mandaram sair dali, não vês? Vai para a cozinha. E não vi mais. Nem meu avô nem aquela lona porque me disseram que era inútil, que era velha.

[2]: http://www.opcitpoesia.com/los-dias-de-irene-especial-dedicado-a-irene-gruss-buenos-aires-1950-2018/#primero


Foto de Luísa Machado.

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