Hoje vamos passear na febre amarela

por Paula Dias Conrado
Fotografia: Estação de Petrópolis – Marc Ferrez (Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles).

Paula Dias Conrado nasceu em 1996, em Volta Redonda. Com formação em Letras na UFF e futura médica. Publicou os livros de poesia Cabra marcada para morrer (Hecatombe, 2021) e Todas as vezes que ficamos vivos (Urutau, 2022). Fez parte do Núcleo de Dramaturgia Firjan SESI, coordenado por Diogo Liberano, onde escreveu Bonito, peça selecionada para publicação pela Firjan.


Hoje vamos passear na febre amarela

você dirige enquanto franze a testa e coloca a língua
pra fora no canto esquerdo da boca você se concentra
para evitar acidentes não queremos morrer ainda
queremos passear e colocar a cabeça pra fora da janela
como um cachorro aproveitando o vento e latindo
pra quem passa do seu lado eu me sinto gigante
dentro desse carro eu ganho tamanho 
com você sinto que estamos capotando 
a caminhonete é velha e amarela e tem um adesivo de estrela
como um brinquedo a caminhonete é velha e amarela 
como a sua casa é velha e amarela
como o amor é velho 

#

cuidado

você freia, bruscamente
um cachorro no meio da rua
parado no centro da pista
com a língua pra fora, ofegante
quase como se pra chamar nossa atenção
querendo ser atropelado ou então 
querendo ser resgatado querendo
ser encontrado.
nós colocamos o cãozinho pra dentro
um pouco cansado, um pouco
ferido, um cãozinho alegre
um cãozinho querendo
passear.

#

entre a euforia e o cansaço
o cruzamento
me sinto exausta 
como um cachorro com a língua pra fora
me sinto pronta

#

sem fazer alarde vou embora
em vez de me despedir eu digo vamos 
fazer uma viagem juntos
você sugere Minas eu digo 
esse fim de semana não posso
vamos deixar pra um desses feriados grandes.


Eu e meu pai dividindo a camisa em alguma cachoeira de Minas Gerais

temos duas cabeças e quatro pernas
tenho uma franja meu pai tem bolsas
debaixo dos olhos tem cabelos pretos
temos quatro braços quarenta dedos sinto 
ter sido sempre assim como se eu tivesse
nascido com uma má formação grudada
no meu pai temos até o mesmo nome 
mas o meu é de menina e o dele é de pai

#

eu te pergunto o que significa sair à francesa
você diz que é ir embora discretamente 
porque se despedir é uma coisa que dá trabalho
diz que o tio Marcos é apaixonado na Marina Lima
não sei se minha tia vai gostar disso mas com famoso
não tem problema a música fala de momentos felizes
você está dançando ou melhor você diz que está dançando 
mas você só está mexendo o ombro 
você diz que tem gingado mas você é frio você 
é duro, pai.

#

é preciso fingir e por isso até invento
que gosto do fluminense
assim garanto que vamos ter pelo menos
uma conversa por dia
é que nisso de fingir acabo me apaixonando
compro até uma camisa pra dividir com você 
ela tem três cores mas na nossa camisa nunca 
coube três pessoas nunca 


amanhecer com um corpo novo
a cada noite que dormimos juntos: 

cavar o seu peito e afundar 
no seu tórax eu descanso mas você
se mantém trabalhando —
se ainda tenho fúria para o coração
é porque você me deu músculo
você fabrica órgãos novos pra mim
porque os meus já morreram de fome


Fotografia: Estação de Petrópolis – Marc Ferrez (Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles).

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