SOBRE
Mais do que reunir narrativas e vozes com o apelo da multiplicidade, os contos de Carne Marcada flagram a ambiguidade de personagens em tensão com a própria existência prosaica. Da nadadora trans de “Malcolm Diva X” ao humorista decadente de “Respeitável Púbico”, não há subjetividade construída sem o crivo da ambivalência, do equívoco, da indeterminação.
Se a prosa brasileira contemporânea, no exercício de transplantar uma suposta essência da humanidade para a ficção, tem deixado de lado as contradições – talvez em busca de consensos em torno da ideia de dor –, Carne Marcada convida leitores a ingressar no alçapão da dúvida. As imagens desse subsolo, em regra pouco agradáveis, oferecem uma oportunidade para experimentar o vir a ser humano, permitindo que as dores existam em sua complexidade indefinível.
Cássio Goné
Cássio Goné nasceu em 1976. Teve o conto “Malcolm Diva X” premiado no Concurso Nacional Ignácio de Loyola Brandão (Araraquara, 2023), e outras pequenas histórias e crônica publicadas em antologias do Prêmio Off-Flip (2023) e na revista TAUP (Toma aí um Poema, 2024). Vive em Ribeirão Pires-SP. Carne Marcada (Cachalote, 2024) é seu primeiro livro.
Trecho
Do conto Do rabo aos chifres
— Tá certo…
— Te falando: já vi — o Bartolomeu disse.
— Bicho besta. — O Ambrósio não tirava o olho da faca. — Despela aí o bicho, vai.
O Ambrósio tem três olhos. Dois são os que ele traz na cara, os manifestados, os da vigia; desses, o que não tava na faca tava no couro, em cima do boi ali mortinho, já sem os cascos e os chambaris, as quatro patonas decepadas apontando pras nuvens: o bicho mesmo já tinha chegado no céu dos bois, passeando nas nuvens pretas e paradas que teimavam em segurar o chumbo. Quem acha que é desses olhos que precisa se defender é porque não sabe que o Ambrósio tem um terceiro, escondido ali no cantinho branco dos outros dois, o olho que não tem pupila: era esse aí que tava firme no Bartolomeu.
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