Gabriele Rosa é natural do Rio de Janeiro. Historiadora e dramaturga de processos, é autora de Dias medidos em xícaras de café (Urutau, 2023), Lavínia é mais rosa que espinho (Motta, Carla, Libertinagem, 2022) e Fendas extraordinárias (Patuá, 2019). Colabora mensalmente com a coluna “memórias táteis, intempéries e outras derivas“, na Revista Ruído Manifesto.
pequena
1.
toalha. amamentada no bico de crochê. o cordão estica do ventre aos dias. laço infinito. danço na agulha das horas. no passador marrom manchado, o café amargo. três gotas de angústia. cinco colheres de fé. reflexos. vestido-espelho. vermelho seco, oco, torto. educação. etiqueta. submissão, por que não? eu não sou ela. fraturas. pele costurada em ponto baixo, baixíssimo. carrego comigo todas as que vieram antes. devorada. não engulo mais. fluida, lenço, baço. qual engasgo te semeia?
2.
aprendi bordado quando
pequena observando
minha vó tecer as
palavras que engolia
sozinha solar saudade
era comum esbarrar com a voz dela
nos panos de prato
3.
a casa feita de quartos
em todo canto uma cabeceira
tenho poucos móveis e não conheço os vizinhos
e as paredes não param de me observar
4.
um curto
por favor
sóis
1.
casa sete em chamas
corpos fabulares tela cheia
peculiares brincam com dedos molhados
printados
e quase e tanto e sempre
fissurados em janelas abertas
dias escorregadios noites espessas
sobra ar
umbigos afeto desertos
o brinquedo não para de girar
atordoados caímos
moldados em sonhos gozados
cárcere temporal trinca braços trêmulos
carrego raízes imensas sopro terra úmida
não te ensinaram a plantar
isto é uma pergunta
susto sino sumo
ileso nas minhas mãos
retratos recados relatos
entregue aos teus cílios afogueados
teclas rápidas engolem poros concretos
desorbitada
leio palavras do avesso salivo versos táteis
sem arquétipos baços descobertos
ofuscados
contaminados
o desejo é pujante e você aí
pedra, preso, Pedro
no seu núcleo tolo
a umidade coçou a pele inquieta
abalos sísmicos
o futuro está atrás de nós
se soubesse que devorava mundo teria aberto o guarda-chuva
2.
10 colheres (sopa) de pó de café
1 litro de água filtrada
3.
querido Pedro
a partir de hoje estamos isolados e
nossos poros limitados às telas
João manda lembranças
preciso de tempo
e café
muito café
4.
sempre fui boa com jogos
— ela é café com leite
eles disseram
Você acabou de ler dois poemas do livro Dias medidos em xícaras de café (Urutau, 2023), de Gabriele Rosa. Gostou das passagens poemas? Adquira-o clicando aqui!
Mais sobre a obra
Dias medidos em xícaras de café não é um livro sobre o tempo, não é um livro sobre medir o tempo, não é um livro sobre a louçaria nem sobre café.
Tendo a acreditar que este é um livro de observação e ponderamento. A observação que advém do contato constante com o conhecido a ponto de enxergá-lo com olhos de surpresa. E o ponderamento a ela atrelado — um pensar profundo sobre aquilo que se acreditou escrutinado ao esgotamento, porém tinha ainda uma barreira superficial a ser rompida para que se pudesse chegar à origem.
Milena Martins Moura
Arte: The Little Seamstress, de Alexei Harlamov.