Iolly Aires, Planaltina-DF. Estudante de Letras e revisora de textos. Possui textos publicados nas revistas LiteraLivre, Cultural Traços, Toma Aí Um Poema, La Loba, Paranhana Literário, Marítimas, Tamarina, Sepé, Subtextos e Intransitiva. Colunista no site Valkirias.
carne feita de verbo
corpo-consciente
conta uma história muito anterior
a que viesse a ser habitado
carne feita de verbo
é mais eloquente do que qualquer palavra
corpo-testemunho
marcado com ferro em brasa
extensa cicatrização de queloide
que permanece, séculos mais tarde
geografia do corpo
veias abertas pelo teu arado
em minha pele
este corpo não está disponível
não foi modelado para outrem
não necessita de uma função
para validar a sua existência
este corpo não é
uma ameaça, meu inimigo
não o temo.
não tema ele também
este corpo é tudo quanto possuo
habitação da vida, da potência
sei que ele basta
continuamente
eu o emancipo.
epopeia do candango desconhecido
dormi o sonho de Dom Bosco
por isso, vim
sentado em um pau-de-arara apinhado de gente
vim com os olhos desnorteados do verde das chapadas
vim com a fome de existência
com nada mais do que meu corpo, minha cultura
meu capital civilizatório
recebi colchão com percevejos para velar meu sono
[quem pode sonhar?]
recebi marmita azeda da Pacheco Fernandes
encontrei Atlântica submersa no Lago Paranoá
encontrei quarto de despejo
ergui a maquete fria
as superquadras arborizadas
projetadas para aflorar o sentimento comunitário
em relação a qual comunidade?
não era o rosto melancólico e cansado do migrante
que queriam para o brasiliense
era outro.
porém, coloquei o pé de barro vermelho
na linha invisível que separa o “nós” e os “outros”
invadi os espaços sem cogitar aceitação
feito uma poeira fina, avermelhada
que turva as vistas
que sobe com o vento, por sobre o sol
e a tudo impregna.
minha história não está submersa com a Vila Amaury
nem soterrada com os trabalhadores da construção
vez em quando vem à superfície
no repente nordestino
nos adágios deixados pelos operários na laje do Congresso Nacional
nos rostos melancólicos e cansados daqueles
que pegam a condução para trabalhar no Plano Piloto.
Arte: House in Moonlight, de Edvard Munch.