Anna Apolinário (João Pessoa, 1986) é escritora, poeta, produtora cultural independente, organizadora do Sarau Selváticas e fundadora da Cia Quimera – Teatro & Poesia. Autora dos livros Solfejo de Eros (CBJE, 2010), Mistrais (Prêmio Literário Augusto dos Anjos – Funesc, 2014), Zarabatana (Patuá, 2016) e A Chave Selvagem do Sonho (Triluna, 2020).
Ventura
Na bruma dos latíbulos
Panteras saboreiam a escuridão
Dentes dançam sonâmbulos
Nos arcos sonoros dos sonhos
Máscaras assobiam mistérios
Mandíbulas, línguas em lunação
E nuvens cadentes,
nuas incandescentes
Destilam a saliva das musas,
moiras e medusas
No coração ferido da bruxa
Devoro o fruto
Para colorir o breu
Respiro a fúria das auroras
Magmáticas Medusas
Nas madrugadas frias de julho
Os pés nus tateiam a casa em ruínas
A pancada do sangue nas artérias
É quase audível
A loucura é uma pedra espessa
Um diamante movediço
Rebrilhando
Coração eriçado
Dentro da escuridão
Um verso de Herberto
Vórtice, açoite no leito
Afundado em abismos
Os rostos, espectros
De singular agudeza
A música sobe,
estrangula estrelas
Às três da manhã
Meu olho esquerdo trepida
Em contínuas ondas
De cortisol e adrenalina
As pálpebras cerradas
Os pulmões em brasa
O corpo saindo
Do centro gravitacional
Pernas e quadris tecendo
O terremoto áureo
O desenho dos lábios
Serpentiforme
Língua vândala na vulva
Magmática Medusa
CRUA
Suportar o baque
Golpe após golpe
Não desviar os olhos
Da fratura exposta
O som de ossos cintilando
Num tenro rasgo
A rubra rede
Do cerne demolido
Músculo, tecido, veia
Rito, ruptura,
E.Q.M.
Afundar os dedos
Nesse corpo chaga
Pulsante
Fresta reluzente
Costurar os talhos
Inventar unguentos
Acariciar as cicatrizes
Ser faca, fome, fúria
Fêmea, afronte
Escrever, transformar
Permanecer.
Arte: An Old Gable, de William Mulready.