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3 poemas de Julia Medina

por Julia Medina
Arte: A mother plainting her little daughter's hair, de Christian Krohg.

Julia Medina nasceu no Rio de Janeiro, em 1991. Movimenta-se entre pesquisa e criação nas artes da cena e escrita. Insiste em escrever poemas.


queria eu trocar esse carpete velho por um punhado de terra

tantos passos de formiga e mais dois de elefante eram precisos pra atravessar todo o corredor
ㅤㅤㅤㅤa vitória: plantar
ㅤㅤㅤㅤo corpo pequeno
ㅤㅤㅤㅤno retângulo de sol
por cima do verde do chão áspero por cima dos tacos de madeira por cima dos sete andares
abaixo por cima do asfalto de pedrinhas por cima do solo tem

essa casa
essa vó gorda e macia
esse cheiro de feijão
essa porta que range
esse calor absurdo que faz
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤela dizia
dava um desânimo

às vezes despencava como
uma marionete naquela massa
ali ouvia os ruídos subterrâneos,
ali mascava chicletes,
ali tinha as mãos sujas de inocência

[pensava às vezes em destruir tudinho com uma serra elétrica de mentirinha, sem sangue e
sem remorso, ver tombar o desenho animado na TV, o feijão do prato, o calor absurdo, todos
os passos aprendidos de cor]

depois do barulho da escavadeira
vinham os trompetes

ajudo a desenterrar
santinhos capacetes ternuras
erguer pequenos reinos
sem pecado


desterro

atravessa a casa
que nem uma criança perdida
ainda não aprendeu
a coreografia
das quinas e interruptores
mas insiste
na disciplina dos passos
ㅤㅤ ㅤ[tem a paciência dos insetos]

a casa se parece
com uma cidade sitiada
está rodeada
de tralhas & cacarecos
um acervo de pequeniníssimos
esquecimentos
nossos
alastrando-se entre
azulejos e
noites
feito formigas
silenciosas
persistentes
ㅤㅤ ㅤ[coisas vivas a crescer diante dos olhos]

é de nascença
eles disseram:
saiu torta
vê as coxas nuas no espelho
os ombros recolhidos para dentro
como as mães recolhem
os filhos em dia de chuva
não se sente nem suja
nem limpa nem nova
nem velha
é como se tivesse herdado
um vestido ainda bom da irmã de cima
apertado demais
mas que lhe cai bem mesmo assim
ㅤㅤ ㅤ[a medida de todas as coisas é, no mínimo, duvidosa]

às vezes parece que
ouve tudo
numa língua estrangeira
corpo boca palavra chão
caem feito dentes
de leite
poderia acreditar que alguém
tivesse trocado os móveis
de lugar
ㅤㅤ ㅤ[outros já estavam aqui antes de nós]

é então que de repente
recorda
como num susto
o caminho de volta


veja,

estamos eu e a mãe
seus cabelos enrolados
do tempo antes
das escovas progressivas
as mãos dadas as pernas
cruzadas
para o mesmo lado
quase idênticas acho graça
da pose do plágio das velhas
histórias repetidas cada vez
mais velhas cada vez mais
repetidas
como aquela do ano novo
mas não
essa é outra visão
de um tempo ainda antes
uma janela que fecho
aqui agora
uma espécie de pista
falsa como nos filmes
de Hitchcock
os favoritos dela

estamos ela e eu
entre nós uma mesa
lembro-me dela
das cadeiras de teia
pelos buraquinhos
eu enfiava os dedos
pequenos o máximo
possível até ficarem
presos e ser difícil sair
dali

os pés estão cortados
e sobre nossas cabeças
é noite dentro
da imitação do quadro
de Hopper
que minha mãe conserva
até hoje nas paredes
de outra casa

não a mesma
não aquela de antes
até hoje as mãos
não sei o que fazer
com elas penso
como alguém que
tenta capturar
coisas que caem
logo antes
de chegarem
ao chão
uma moldura
que depois de anos
pacífica despenca

estou a trocar
as datas as coisas
a pele que desprende
penso que devia fazer mais
fotos depois ir buscá-las
numa gaveta ou pasta
do computador
depois olhar pra elas
às vezes pouco às vezes
muito tempo
depois repetidas vezes
escavar

abrir e fechar vãos
ventas portas
alçapões os olhos
fundo apanhar impulso
saltar para dentro
é o que faço fico ali

olhando

o céu as estrelas
as coisas que me olham
de volta estou ali
e estou do outro lado

olhando

como quem espera
uma visita
o fim de um filme
ou poema


Arte: A mother plainting her little daughter’s hair, de Christian Krohg.

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