Aline A. Assis nasceu em 1999, em São Paulo. É multiartista nas linguagens de literatura, cinema e artes visuais, com formação em Audiovisual pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e participação em cursos livres de escrita. Integrou as turmas do curso de Poesia Expandida 2020 e do Curso Livre de Preparação para Escritores (CLIPE) – Módulo Poesia 2021, ambos no Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura (Casa das Rosas). Hoje faz parte da equipe de poetas do portal Fazia Poesia e já foi publicada em antologias, revistas físicas e digitais. corpocaído é seu primeiro livro de poesias.
corpocaído
em queda
com as bochechas ainda
por hábito
enrijecidas
notei
u
m
m
u
n
d
o
g
i
g
a
n
t
e
abaixo de mim
e a queda
imaginei dali a uns minutos meu corpo espatifado e eu
– carne amassada calada –
tentando
– ainda –
desfazer o sorriso que se forçava a me
sufocar
imaginei que quando me tirassem o corpo por certo lhe berrariam
e o padre
– rezando avemaria –
à minha mãe
perguntaria
como colocá-la no altar?
e eu, se acaso ainda tivesse a mão viva,
de pronto, lhe agarraria
por favor
não me bote no altar
e eu, se acaso ainda tivesse o olho vivo,
de pronto, lhe cuspiria
veja
como estou feia
por favor
não me bote no altar
e eu, se acaso a boca ainda fosse minha,
de pronto, lhe gritaria
avemaria
me larga pra lá
por favor
não me bote no altar
acho injusto
é verdade
que me vejam em carne amassada
e me desejem em paz já morta
e me rezem
acho injusto
é verdade
que me rezem
– a deus e ao mundo –
aqueles mesmos que
já me vendo caindo em queda
sequer tentaram
me olhar
o corpo, me lembro,
começou numa queda pássaro
e achei
de início
bem justo
que a despeito de me olharem
não me tentassem pegar
o corpo, me lembro,
começou caindo invertido
e sorriu
pois a paisagem
– em queda borrada-
achou lindo de olhar
mas quando
enfim
– eu corpo –
me inverti
ao mundo
senti
meu pulmão
se inflar
a explosão no ar foi linda
amarelo vermelho azul
paleta de cores
harmonia no ar
e como sustentados pelo meu espetáculo
sacaram seus celulares
vejá lá
veja lá
ela cai
veja lá
o coração
como prevendo o futuro
tentou
se aortar em cordas
e porque
não pode
se prender aos prédios
se vendeu a quem lhe quisesse
eis aqui meu coração
eis aqui meu coração
mas ninguém quis
o intestino
como em festa desespero
tentou se desenrolar inteiro
e se agarrou
num poste ou outro
estamos
eu disse
estamos perto do chão
é festa
é festa de são-joão
e quando a queda já era quase certa
a buceta
se prendeu em forma casulo
tentando
lutando
pra em balão borboleta
me resgatar
mas não
estamos
eu disse
estamos perto – muito perto – do chão
é festa
é festa na contramão
e como os carros finalmente se sentissem
pararam
– que linda a bundinha amassada –
pararam
pra me olhar
e como os homens finalmente me olhassem
gritaram
– quem é que morre sorrindo? –
gritaram
ao me olhar
e como ela finalmente enxergasse
chorou
– teu sangue ainda é doce –
chorou
ao me tocar
e eu
carne amassada doce
se acaso ainda tivesse peito
peitava
a quem chegasse
me deixem em corpocaído
aqui eu quero ficar
e eu, se acaso ainda tivesse corpo,
corpava
em todo aço que achasse
pro meu corpo
desendoçar
e eu, se acaso ainda tivesse veias,
vaiava
a quem falasse
– que linda –
linda
eu não quero estar
e como
eu ainda tivesse vida
vibrei
me deixem
eu disse
me deixem em corpocaído
aqui eu quero ficar
me deixem
eu disse
me deixem em corpocaído
sozinha
eu disse
sozinha vou me remontar
eu te amo
eu te amo como se amam as astronaves e os girassóis
eu te amo como se respira e se escreve
eu te amo
eu te amo mais do que à poesia
e por tanto te amar custei a te dizer
e por tanto te amar tentei não amar
nuncamais
e por tanto te amar me enfiei
numamais
camisa
ㅤㅤ de força
mãe
fui e voltei cem vezes cem vezes cem
da batalha
eu amei cem vezes cem vezes cem
em batalha
mãe
sonhei que eu lhe beijava a boca
e você
ㅤㅤmemordiaderaiva
e mesmo com a boca sangrando
eu dizia
e mesmo com o corpo em carne
eu digo
eu te amo
euteamomãeeuteamo
ofício
I
as palavras que lanço aqui, com este sorriso de canto de olho, se vocês as procurarem em
meus cadernos, as encontrarão, por ventura
molhadas
II
é que neste ofício de
ㅤirromper
ㅤㅤㅤㅤㅤ silêncios
por vezes recorremos a
fluidos
corpóreos
III
veja
esses dias me assentava ao lado de meu caderno quando
me vi
sacando dentre os lábios menores:
um verso
IV
(com cuidado
o coloco no papel
e sinto
brotando do lado esquerdo)
uma lágrima
V
(a lágrima
aparece
em forma de pausa)
VI
este estranho poema
molhei com um líquido branco que
caiu
do meu dedão direito
VII
o pus
(de ter andado demais na praia)
causa um efeito todo
especial
VIII
veja
nem sempre os líquidos caem de meus buracos mais
digamos
populares
VIV
quando cansada do ofício
a poeta
num desejo descomedido de ser
popular
encaixa as dobras dos cadernos entre os lábios maiores e
pela manhã
lambe as páginas
(cavalgadas
noite adentro)
X
(se perguntam-a do que se trata
ela diz
sorrindo)
XI
“são…
ㅤㅤ lágrimas”
diálogo de duas evas
minha boca em tuas bocas
escorrendo
as almas santas
remoendo
as coisas todas:
as tuas coisas
nas minhas coisas
em nossas coxas
e pelas ancas
e pelos peitos
e nos cabelos
e no marfim.
eu logo tremo
nós nos trememos
e já não temo
e já não penso
e é o fim.
já ofegando
e lhe olhando
e não sabendo
e lhe olhando
e já notando
onde deixei
o que perdi.
Foto de Luísa Machado.