Douglas Laurindo mora em Manaus (AM). É professor de língua portuguesa, escreve, edita e se dedica à pesquisa. É autor de O limiar das fendas (Urutau, 2022).
Poema de cinco faces
Quando nasci, um anjo padrão
desses de Instagram
disse: vai, mona! ser oprimida na vida.
As casas espiam os pais
que correm atrás dos filhos
antes de expulsá-los:
esse é o fato.
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu poderia morrer
se sabias que poderia ser morto.
Mundo mundo vasto mundo
se eu não fosse bicha,
qual seria a revolução?
Eu não devia te dizer
mas esse chão
essa Like a Virgin
botam a gente vivo como o diabo.
orar são
pai nosso que estais no céu,
tá osso
rogai por meus filhos
que sentem fome e frio
nem é preciso vir até nós
com todo o reino,
mas que seja feita,
só nessa época de vazante,
a vossa vontade,
assim na terra
como nos rios e igarapés
a macaxeira nos dai hoje,
perdoai as nossas descrenças
assim como a gente perdoa
o josé ladrão de bananeira
que me tem ofendido na igreja
e nos livrai de toda miséria
amém
O limiar das fendas
e como eu caminhasse
por aqueles pátios líquidos
de violência falada,
algo inesperado se via:
a fenda é o espaço
estreito no qual o fio
morte e vida termina.
a fenda é onde a luz
surge como lamparina
em oceano inexplorado.
dentro dela, recolhidos,
há enormes navegantes
com seus braços em desuso.
observam a imensidão
das águas, do céu, da alma
recostadas a mil vãos.
no submundo de feridas,
a ventania os obriga
ao abraço retilíneo.
não se cansam, porém,
de a cada jogada nova,
amontoarem-se todos:
há de se acreditar
no monte de vida que,
justo, romperá o limbo.
•
como estarei eu
farto de gigantes
ou de semideuses
se meu ritual
tão apoteótico
é ser teu mortal
Você acabou de ler uma seleção de poemas de O limiar das fendas (Urutau, 2022), livro de estreia de Douglas Laurindo. Gostou dos poemas? Adquira-o clicando aqui
Mais sobre a obra
A poesia iconoclasta de Douglas Laurindo não propõe, simplesmente, a destruição das imagens sagradas da nossa cultura machista e heteronormativa. Sua operação é a da devoração criadora, com ressonâncias do sonho de Oswald de Andrade. Trata-se, porém, de uma antropofagia particular: devorar o interdito, o proibido, a normatividade e, nesse ato, devorar a si mesmo para recriar-se livre e potente, mesmo na interdição, entre as fendas.
Eleazar Venancio Carrias
Arte: The Harbor Light de L. Birge Harrison.