Nascida em São Paulo (SP), em 1994, Michelle Soares é poeta, escritora e colagista. Já lançou dois zines independentes, e foi publicada pela Arara Revista, Ruído Manifesto, Vício Velho, Revista Desvario, Mallarmargens, Fazia Poesia, Revista Cassandra, além de ter um poema publicado na Antologia Simpósio dos Poetas Bêbadxs (Desconcertos Editora, 2021). Ilustrou o miolo e capa de diversas obras de outros autores. Seu novo livro, A Mulher ao Avesso (Mocho Edições, 2022), versa sobre a saúde mental de mulheres e como as experiências femininas seguem interligadas, além de ilustrar a capa e miolo.
o farol
hoje vi uma mulher chorar
no metrô lotado
choro feio, cara enrugada
rosto vermelho, assoar do nariz
choro derradeiro de dor
que não aguenta mais
ser particular.
se debruça sobre os trilhos
invade dias inteiros
não se segura atrás da linha amarela
sem esconder o rosto,
se abre inteira para estranhos
ofuscando o sol da tarde,
o brilho aguado do olhar.
a dor que não suporta mais
ser privada:
descarrilha, tão bela
em fardos alheios.
mulheres ao avesso
agora desce das nuvens o choro destas
mulheres.
algumas fumam descontroladamente,
outras murmuram em suas camas
possivelmente, é o verde-água das paredes
a tinta desbotada, os móveis velhos
ou o remédio diluído no copinho de plástico:
o gosto do tratamento é ruim e amargo.
agora, o dia enche o peito de pequenas doses de loucura.
algumas esperam a alta,
umas dançam sozinhas como se encontrassem Deus,
outras só querem voltar a si.
vertigem:
espetacular entardecer. nenhuma delas olha para o céu.
ala feminina
ela poderia ter caído no vagão dos loucos
porque a histeria é um substantivo feminino
e mulheres já foram largadas lá por tão pouco
talvez seja a perfeição inatingível por todos
os movimentos bruscos que derrubam
a fina porcelana da normalidade imposta
no chão.
elegia à loucura em horário de pico
a mulher para no meio da rua e crava os pés no asfalto.
inerte, alastra sua falta de movimento
à vida que para junto.
vidros empoeirados, nuvens carregadas;
vento ausente: é o mundo que se prosta
diante da mulher parada.
das solas de seus pés, raízes destroem o concreto
e cria uma fila de carros, diante de um obstáculo.
o trânsito inteiro diante de um peito aberto.
e o mundo deixa de girar. engolida por ela,
toda a gravidade levitando a vida suspensa no ar.
não pensa em se matar,
não quer que um ônibus a atropele, não,
é só um cansaço, dedos dos pés atrofiados:
a mulher busca movimento,
mas é incapaz de dar mais um passo.
como se encarasse a vida nos olhos
e aqueles que querem partir, mas, vingativa,
partilha com o mundo sua incapacidade de seguir.
era só mais um passo até a calçada,
só mais um movimento até a outra vida,
mas as buzinas cantam, ópera em descompasso
escoa sua inércia por faixas e semáforos.
a vida que para em um desconfortável abraço.
xingamentos ecoam, o farol está verde
galgam aos céus as suas retinas raivosas,
pequena loucura, essa intimidade partilhada:
perfura a terra, com seus pés colados,
vida estática, estagna o planeta que se desarma:
o Universo é engolido, porque vida é movimento!
testemunha, o trânsito impaciente,
a inércia inebriante e o voraz desejo
da calma em amargura de um corpo estagnado.
olhos herméticos encarando o vidro dos carros
e os faróis piscando feito estrelinhas alinhadas.
Arte: Sophonisba Drinking the Poison, de Giovanni Caroto.