propagação
a janela que dorme fechada
todos os dias
segura quase tudo
quase tudo que se passa.
vidro, mais areia
do que alumínio
imã de poeira
e de todas as coisas
sobre as quais fala o ar.
perde alguma coisa
entre os grãos
mistura matéria e sonho
nunca juntos
sente baforar a dor.
todo corpo é atravessado
madeira colorida,
feixe de rapina amarela
não poder ver a vida que
se movimenta silenciosa
olhos fechados.
a janela dorme fechada
mas o ruído — quebradiço —
permanece.
uma vez tive um grande amor
que me disse que não precisávamos
explicar tudo em palavras
que as coisas eram mais bonitas
desacompanhadas
isso me deixou triste por um tempo
mas depois que passei a amar outras vezes
percebi que meu primeiro amor nunca esteve errado
melhor ainda
descobri que seu amor é verdadeiro
assim como o meu
por ironia talvez
todas as coisas mais bonitas que li
foram escritas pelas mãos do meu primeiro amor
e os olhos do meu primeiro amor sempre viram as palavras sempre fomos bons em pensar palavras
nunca em dizê-las
até que nos tornamos bons em dizê-las
e aí percebemos que o tempo passou
e que não sabíamos mais contar a nossa própria história
nos tornamos novos contadores de histórias
alheias
engasgos
de pernas abertas, tu e a tua dor
rememora, cheiro de carne
rosto derretendo na água suja
há uma falha.
tudo correndo para o ralo.
não lembro. não consigo lembrar.
a imagem vai se juntando e quando parece
preparada para se mover
desmorona rapidamente.
olhos fechados. sorriso. a mesma frase de sempre.
não consigo refazê-la. falta a voz.
agora só poderei contá-las — já são mentiras.
o que foi aquilo? não estou preparada.
dizem que é melhor assim.
ter uma memória fraca.
mas algo pairando entre o silêncio
deixa a suspeita.
algum fantasma sem rosto sentado à mesa.
primeiro par de asas
nós dois
no ventre do destino
bebês nadando dentro do
útero pesado
das nossas mães
por toda a vida
imaculando a inocência
subindo gangorras tomando
choques elétricos
soltando pipas e fogos de artifício
a cada quatro anos o céu se desmancha
e sussurramos novos segredos xingamos lukácsianos aterrissamos
[ seguros numa velha
praia de cimento
de longe o banco sujo de gozo em que
nos beijamos pela primeira vez
copos de plástico cervejas vazias a podridão pós-apocalíptica
meus dentes grandes abertos num grito
e os seus pequenos mordendo meus medos
em mim a certeza de que fomos felizes
nos corredores superlotados do ensino médio
em que eu escutava com atenção curiosidades sobre a copa de 70
cantarolava rocks românticos
e sofria de reações involuntárias
arrebatada pelos seus olhos viscerais e fulminantes
dos quais me riscou de palavras e sonhos
que só cabem nos corações dos meninos
Ivana de Lima Fontes tem sangue de Aracaju e sotaque de Maceió. Já fez música, já fez direito, já fez matéria sobre emagrecimento e só nunca deixou de fazer poesia. É graduanda em jornalismo na Faculdade Cásper Líbero. Conheça também seu trabalho no Medium.