Isabella Bettoni é escritora, pesquisadora e advogada feminista de BH/MG (1996). Publicou Brincando de fazer poesia (2008) e Não tentar domar bicho selvagem (2022). Participa de quatro antologias, incluindo Antes que eu me esqueça: 50 autoras lésbicas e bissexuais hoje (2021) e Erótica: versos lésbicas (2022). Foi convidada do Sarau Mix Literário 2022 e tem textos em revistas, podcasts e portais, como Mulheres que escrevem e Fazia Poesia.
O propósito do teatro
Espantar fantasmas e vencer a morte,
ou morrer várias vezes (todos os dias e duas vezes aos sábados e domingos)
resistir a este governo
aqui e agora
de cara voltada para o público
transformar a poesia
em voz
e gestos
e com isso
colocar o corpo no centro,
provocar fissuras com
o conhecimento instalado no corpo
questionar a gravidade, as normas, os usos do espaço,
tecer rupturas, afetos, prazeres
olhar nos olhos e
desafiar o mundo
ㅤㅤㅤㅤa ser outro
correr em direção a…
segurando algo nas mãos
talvez
outras mãos
reunir desconhecidos para
prestar atenção na vida
compartilhar a experiência
de ver a sopa engrossar,
os corpos se embolarem nus,
o enigma,
ação, pulsão, dança,
grito.
silêncio.
não lembramos os rostos de quem senta ao lado, cara voltada para o palco
mas somos nós-outras, carne, coletivo, respirando o mesmo ar,
compartilhando o assombro diante do mistério
e pelo teatro,
convidadas a
pensar o impossível
O bicho
Um bicho enorme atravessa a rua no centro da cidade
tão cotidiano quanto o foto-na-hora-foto-vendo-ouro-compro-cabelo
um pouco maior do que o pirulito da praça sete,
faz uma sombra estranha no encontro das avenidas
e caminha lentamente ao lado daquela placa que diz
proibido virar à direita, proibido virar à direita
se o bicho não vira a direita, para onde ele vai? para onde é possível ir?
será que os carros param, será que o mundo se suspende, será que as pessoas interrompem a corrida e descem do ônibus pra ver?
será que ao acordar de repente com um susto assim as pessoas
param pra ver o que nunca foi visto
ver o que nunca foi visto
e para onde ele vai?
Ergueu-se o arco-íris após longa tormenta
(em memória de emily dickinson)
I –
uma moça séria
os olhos e cabelos: escuros
sobre a pele clara
o penteado: rígido
a cabeça: rompida
ao meio
as vestes: duras
e o olhar distante
como quem,
fora de seu tempo,
fora de seu espaço,
usa as palavras
– aquelas mais intensas e macias –
para falar de amor.
(um assombro!)
amor proibido e apagado
por especulações, violentas, tantas,
os nomes de mulher
riscados
somente nas costuras de hoje
reaparecem na história
II –
vamos comer emily
para que amores como os nossos
sejam possíveis
Às ausentes de referências
Passei a vida contendo rio com as mãos
Tarefa impossível
e mal feita
Ritual
Uma mulher que sangra
e rola
na terra
molhada
a terra e a mulher
de sangue
os sons: do farfalhar de folhas, do caminhar das formigas e do que escorre de dentro
pra fora
pra dentro
da terra
E os pelos e as unhas e as dobras e os vincos e os vazios e as marcas e os rasgos e as sombras da mulher e da terra
O encontro: um ritual.
A mulher canta? Cala? Chora?
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Mais sobre a obra
Não tentar domar bicho selvagem, da poeta Isabella Bettoni, tem como eixo central a busca por si mesma e por projetos possíveis de outros mundos através do diálogo com mulheres e existências dissidentes. Nesse sentido, o livro traz temas como a investigação da própria ancestralidade, a descoberta e a compreensão do desejo enquanto dissidência e até mesmo a importância da escrita na produção dessa identidade.
Arte: The Greek Poet Sappho and the Girl from Mytilene, de Nicolai Abildgaard.