Arlete Mendes é professora, cronista, poeta. Graduada e mestre em Letras pela USP, atualmente é aluna do curso de pós-graduação: Formação de escritores, do Instituto Vera Cruz. Co-fundadora da coletiva de escritoras Elas contra Tebas e da Vicença Editorial. Em 2019 publicou seu primeiro livro de poesia Retalhos. Ganhadora do prêmio ProAC 2021 poesia com o qual publicou Gurufim na primavera de 2022.
nota sobre a larva
a pequena
imersa em rito sacro
não se incomoda com o inseto
em sobrevoo
parte o pão que transborda margarina
dispondo-o eucaristicamente ao lado do prato
a boca besuntada de óleos santos diz para mim
estou alimentando as moscas
parto também um pedaço de pão
ofertando-o no altar improvisado
engulo o asco em nome do sagrado
na inútil tentativa de capturá-las
anotei
não esquecer de alimentar
as moscas e as crianças
esma
a página em branco não me assusta
ao res do chão também colho amplitudes
perscruto o eco de um mundo mudo
a procura é apenas de uma ocasião
propícia à cama à trama à lama
até que ocorra a captura vagarosa
ei-la complacente a devorar verduras
deslinda maleável no próprio vício
malemolente molusco quase líquido
não sente o peso de carregar o tempo
recolhe-se em sua casa sem perceber
o visgo cristalino dos dias e das horas
rabisco então entre sombras satisfeita
diante de tua fluída paciência sinto
cumprir essa ínfima senda de esma
bocas santas
maceram
montanhas e costras
com os dentes
sorvem
lavas e icebergs
com as línguas
preparam
o primeiro
mistério
com as faringes
vertem as sinas
volvem a vida
com as vísceras
elegia ao ipê amarelo
acordei macambúzia nublada mas ao te vir em espantoso sol não contive o
grito desta elegia era final de outubro três anos sobre o duro solo terra
vermelha pouco sol escavações caninas lá fora a roda-viva que gira assíncrona
quando ninguém mais pendia em flor floriste observando amiúde o dentro e o
fora dos muros não te intimidaste com a mesquinhez humana amarrei em teus
galhos ‘inda franzinos uma chuva-de-ouro de ponta cabeça que espera o colibri
em seu voo-pouso quem sabe lhe romper em alumiadas cores em união
côncava colher o calor fugidio do sagrado instante entre vibrar fenecer só
poderei ser livre se me plantares os desígnios secretos de teus dons amarelos
ode às goiabeiras
a velha senhora já não tem dentes
os bigatos comeram as crianças
no concreto o sangue verde-rosado
será pisado pelos surdos sapatos
que esmagam o esquecido fruto
sem ouvir o grito agudo do porvir
até o alegre bem-te-vi a desprezou
oh pobre vira lata dos jardins
quanta memória de riso guarda em ti
não é culpa tua as espécies citadinas
perderam há tempos a envergadura
encolheram-se mínimos para dentro
puto despeito puro desprezo é isto
as pernas estão curtas para o salto
as vozes nos diafragmas incrustadas
esqueça dos homens-pássaros-crianças
verão novo já vem vede ao teu lado
ainda tens a velha casa-alada
a verter os cânticos de pedra
ramagem
videira nova só floresce
no arado da vertigem
verbo afoito só vinga
no avesso da estufa
vínculos mudos
vínculos mudos
verbo e videira
deitados na terra
à espera do absurdo
Você acabou de ler uma seleção de poemas de Gurufim (Vicença Editorial, 2022), livro de Arlete Mendes. Gostou dos poemas? Adquira-o completo clicando aqui!
Mais sobre a obra
O movimento metamorfoseador, que atravessa os nascimentos e as mortes do corpo feminino, será o fio espiralar em que ondula Gurufim. Temos aqui a presença de vozes multifacetadas de mulheres que duvidam até mesmo da sua condição de ser-estar num mundo como o nosso e anseiam, tecem, como a aranha, o ovo inédito.
Ainda que a busca seja pelo impulso de vida, velhas dúvidas vêm à tona. Como ser mulher vivendo num país recorde de feminicídio e estupro? Como sentir prazer a partir de um corpo sentenciado antes mesmo de nascer? Como sentir o amor se este pode efetivamente matar? Como é “ser” num lugar em que se precisa ludibriar a todo instante o “não-ser”? Inquietações como essas pulsam nos versos agudos desta poeta nordestina, afroindígena e periférica, que no processo de revisitação da sua ancestralidade, atribuiu a sua poética um lugar de sonho, de infinitudes, de encontro contínuo entre passado-presente-futuro.
Foto de Luísa Machado.