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A ortografia da chuva e da neve

Por Leopoldo Cavalcante
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I.
Pela janela da casa de Frida
O ruido do mar quebra no gelo da praia
As gaivotas patinam pela orla
Em busca de peixes estagnados entre
Os espaços de transição da água.

II.
Pela janela da casa de Frida
Não se ouvem os melros da primavera
Tampouco o respirar da floresta
O silêncio é afogado pelo ruido do mar.

III.
Nos cabelos de Frida
A geada acumula-se
A gravidade acumula-se
E no balançar discreto de seus quadris
O chão de madeira norueguesa acumula-se
De palavras escritas em gelo.

IV.
A mãe veste seu casaco e vai caçar pássaros
Frida, pela janela, fia em pele esticada
O cervo abatido pelo pai
“É o inverno”, ele disse
E o céu fechou-se em inverno.

V.
Deus e o Diabo ainda brincavam com a língua
No século nove depois de Cristo.

Nesse jogo, o pai de Frida era ludibriado
Por forças além de seu entendimento.

VI.
Na casa resignada do alfaiate
O som das galinhas era confundido com o som das coxas de sua esposa.

As palavras das mulheres
Eram discretamente similares 
Aos gemidos dos animais.

VII.
Em seus bicos,
Os seixos dos melros
Carregavam a marca de Caim.
E era por isso que se recomendava
A perseguição sanguinolenta daqueles pássaros. 

VIII.
Para os ouvidos atentos de Frida
O som da nevasca e da chuva
Eram assustadoramente semelhantes
Mas seus olhos distinguiam perfeitamente cada
Palavra escrita na caligrafia da neve e da chuva.

IX.
As marcas da parede da casa estavam cheias de tempo
O tempo riscado pelos antepassados na língua 
Cada vez mais distante
Eram indissociáveis da ortografia eterna da chuva e da neve

X.
Apenas Frida era analfabeta na escrita do tempo
Apenas Frida sabia não saber o que significavam as palavras na parede
E as palavras vistas pela janela
Tecidas pelo inverno e pelo silêncio dos melros.

XI.
Dos seixos acumulados pelos melros
Frida leu, pela sua janela,
O nascimento do mar.

XII.
Sem saber, a mãe peleja contra Deus
Enquanto abate os pássaros de seus ninhos.

XIII.
De todas as palavras nas paredes de casa
Nenhuma era como as ditas pelo pai
Livres como as ditas pelo pai
Poderosas como as ditas pelo pai.

XIV.
Entre as gaivotas,
O Diabo patinava pelo mar
Apagando os traços da ortografia eterna
Que só os olhos de Frida conseguiam distinguir.

XV.
A trupe de músicos invade a vila com seus instrumentos
Roubam a pele de cervo caçado pelo pai e
Tecem um tambor para acompanhar o ritmo
Cadenciado do silêncio dos melros.

XVI.
Pela janela da casa de Frida
O ruido do mar bate no gelo da praia
Enquanto o tempo escreve o inverno
No coração fechado de todas as bestas.


Leopoldo Cavalcante nasceu em Fortaleza, Ceará. É editor da revista Aboio. Foi colunista de cultura no jornal Focus. Escreve sem compromisso no @resenhador_, Instagram literário – ou diário irregular de leituras.

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