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abandono

por Gustavo Duarte
Quadrado preto sobre Quadrado Preto de Malevich

Gustavo Moretti Duarte, 27, São Paulo. 
De poeta apenas a passagem fracassada pelo largo São Francisco. 
De resto, em formação.


sistemas

nervoso inconsciente
refeito em cavalo sem chifre
pelo despertador
inicia

circulatório
abre as janelas
excretor
lê um jornal
digestório
fogo e café
respiratório
estufa
vira as chaves
e vai ser multado

sentado
nos dedos
muscular digita horas

aos fracos
endócrino
transmissores
em frascos

numa falha de semana
incontrolado esquelético
atraído por baquetas
traído por multidões
encerra outra noite em solo reprodutor

metido num canto da ponte sem energia
se conta em pedaços que apenas funcionam
para que tudo funcione

sente a falta
sensorial
reiniciar?


Remédios

Ao corte ardido, sopro
Ao corte induzido, ponto

Ao gatilho em disparo, cigarro
Ao gatilho em vigília, rima

Ao dente largo, divã
Ao dente preso, banco

À palma aberta, endereço
À palma inversa, surpresa

Ao sono longo, alerta
Ao sono em pé, sonho

À pele pálida, areia
À pele exposta, crème

Ao olhar cansado, seda
Ao olhar distante, raiz

Ao passo firme, trampolim
Ao passo lento, direção

À sombra passada, cana
À sombra frontal, café

À cabeça cheia, veia espessa
Ao coração faminto, mente fria


não para

fala mais
sobre qualquer coisa
que eu não entendo
que eu deito o queixo sobre os braços
quando você mexe os braços
com os olhos deitados em mim

senta aqui
coloca qualquer coisa
que eu não quero assistir
que eu reclame, pra assistir
você perdendo a linha
rindo de irritação

vai lá na cozinha
pegar qualquer coisa
que eu não vou comer
que eu espio seus pés descalços
fugindo do chão gelado
em passinho acelerado

tira a mão dai
mexe qualquer coisa
que eu mexi sem querer
que me sobe a espinha
quando derruba o controle
esquecendo a tv ligada

acorda
veste qualquer coisa
que eu nem vou reparar
quando no corpo dança universo
some quando, como ou lugar
sinto só movimentar


repetidamente

no passar do tempo
eu vi

o riso
que era dia nascido em gemido
cansar o coração
na calada

no grito
que não aceita
feito açoite
quem muda

no olhar
que aceita
muda
que mudou
mas ainda sente

nos dois
amor que virou medo


carlos,
aqui ficou, como em tudo
um pouco de memória

um rato roendo pedra
um botão fechando a camisa perfumada
um nome na lista
um amplificador
o zumbido colorido da noite

na beira da estrada
despido em reflexos
no brancor do travesseiro esterilizado
seus versos vaidosos me excitaram

o nojo
dei de costas aos vidros de loção
aliviei da garganta o mal cheiro
que abafa
o gozo
da consciência limpa


abandono

quando minha mãe éramos criança
tomava conta de mim
na palma da mão pesada
aprendi a contar até cinco

minha mãe
mãe de minha irmã
nossa mãe
mãe da casa
mãe

do carrinho eu recebia um carinho
ao som de Zeca pagodinho
seguindo nela o olhar que contava muitas mães
mas no balanço dos dias nem me dei conta
que ela nunca me contou sobre a mãe dela
dizia só que tudo seria diferente

numa noite de urgência,
o plantão invadiu a novela para contagem de corpos
entre a cozinha e meu quarto ano de vida
a pequena chorava por contos de dormir

alguma mãe precisou descansar
e a conta sobrou pra mim

– toma esse jornal velho, faz um chapéu e fica quietinho pra eu gostar de você

pela última vez
criança
fiz de conta que obedeci

num canto da sala
soldado feito
de olhar tomado
aprendi a ler
e nunca mais ouvi de falar de amor

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