Tiago Mine (São Paulo, 1984) é poeta, ator, editor e pesquisador. Mestre em Estudos Literários pela UNIFESP e graduado em Letras/língua portuguesa pelo Instituto Singularidades. Criador e coordenador das oficinas literárias no CDC Vento Leste, é também editor da Antipoda Editorial, compõe o conselho editorial da Editora Amaranta e integra o Grupo de Pesquisa Prof. Antonio Candido de Melo e Souza (UFAC/CNPq). Além disso, é criador da performance PeiXeVértebra e integrante do Coletivo Dolores Boca Aberta Mecatrônica de Artes (SP). Autor de Cronólogo das queratinas (Antipoda editorial, 2022), Flor de arremesso (ed. Urutau, 2020), Nas Coxas – do mundo flutuante (2017), Láudano (ed. Córrego, 2014), Suite Zero (2010) e outros livretos.
Daqui
do outro lado
desse abismo
dominical
observo cotidiano
teu balanço
de pernas
bambas
à beira do inalcançável
em simetria com a sombra
dos poucos móveis que temos
te inclinas num ir e vir
de não
e
de queda
Daqui
do extremo oriente
dessa tapeçaria sintética
que nos divide a sala
e oculta o pó
varrido há pouco
pra debaixo de nossa armadura
de soslaio
vou-te até a ponta de um cordão
de algodão cru
fio de penduricalho
sustentando velharias
elefantes e galinhas
de panos
em cores naturais
deserto
volto a parede de onde
pende
uma Bahia presa aos pedaços
quina branca ao
ar
a balançar
um sino de lata
remblemblando sua atenção
mas
nada
vê
é uma náufraga
sobrevive sem dar ao deuses
o sacrifício da carne
das horas
e o testemunho das maravilhas oculto
no ópio dos olhos
de vidro
não
é
o que
sai de sua boca
lâminas de
apenas espuma e vento
imersa
não se entrega ao delírio
da Beleza nem da bem aventurança nem goza
nem se rebela
com o mistério das ondas
nem pressente o perigo das fragas
espalmando com distração
o vapor ao redor
não há adeus
nem diz que
bem ou mal
a vida
ávida
mansa imensa
quebrando
nas franjas
das coisas
imolando
a seco
a casa
tudo vai indo
sempre
não vai
renunciando a riqueza imaterial
que é a morte
prefere o silêncio
Daqui
fechado ao lado de fora
dessa consistência
que flagra e distancia
tomo consciência
da densidão
da casca
de peles e panos
e o ritmo incessante
desse entravar-se de quê
sem o desespero que cega
e blinda e morde
Aqui
não há com quem
não há escambo
nem lugar
nem um remoçar de escolhas
não há encolha pra se fazer
de esconderijo
nem segredo
que revele dois
na cumplicidade de catar ternuras como quem mata piolhos
em noite de núpcias
Tive uma vida toda aos 37
uma vida de pedra sabão
hoje filhos a dar um lar
e uma ética de cachorro latido
hoje rocha carapaça
entre faíscas
e lascas quebradiças de tantos
estalos
hoje são
se salvo
salto pra ontem
pra dentro desse fluxo
passadiço
da esfola dos gatos
dos tormentos nos asfaltos
tempo magma
das faltas
e dos pulos
de quando
requebrava no corpo
daquele rio morto
daquele rio inavegável
das vontades tortas
Pinheiros das tardes imberbes
das fugas pela cidade
fecundas de sonhos
e de fracassos
íamos juntos
na velocidade mínima dos nossos passos
para atravessar a modorra cinza
dos viadutos
que nos pegava aquele mal
pensamento
de que íamos ficando
presos ao tempo dentro do tempo
ao mundo dentro da cidade
escrevendo nossa história
como um risco escrito de costas
esperando que a flor náusea
redimisse a gente
do pouco e
do que basta
íamos tardemente
como se sempre perdidos
fabricando o pé
e os desejos que fazem
o caminho
molhado de vontades
e desesperados
por um pedaço
de futuro
íamos tarde-lentos
entre o enxofre e a garganta seca
entre o ar pesado das horas moles
a gente sabia voar
e dizia – me infinita
o rio morto
dividia a gente por dentro
entre a teimosia dos galhos que cresciam à margem
sob o brilho intenso das promessas pomo e o lúmen
gasoso daquele horizonte
laranjaurora das premeditações
ao lado de Zéfiro
com suas bochechas gordas
e trancinhas nos cabelos da púbis
cantarolávamos caraminholas
no desespero do fim das tardes
do caldo morno e lodoso
de nossa cozedura
borbulhavam
manhas e flagelos
tumultos obscuros que se misturavam
às espumas da cidade
amores de densos horrores
amálgama de Dante e Plínio
Marcos dessas horas calmas
o Inferno mesclado à matéria vida
os sonhos secando como cascas de ferida
encrostados na pele como cracas à beira do Rio de
onde se arremessam sombras e memórias armários,
anéis de casamento e crianças mal criadas
sobrevivemos
nós que aprendemos a nadar e a sair desse lodo meninos vestidos em pele de lobo
maltrapilhos e filhos
de alguém que gerou alguém
proles de quem
apesar do relógio
e do aluguel
cultivou a vida
no fundo verde
de garrafas
atiradas ao rio
Desenho de Ariyoshi Kondo.