Hoje depois do Vírus,
ainda escassos dos cinco sentidos,
não queremos falar nisso.
Depois da curva, da alta, da queda, do luto,
reclamamos distraídos
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀na rua
do tempo,
da chuva, da seca, do calor, do frio,
dos políticos.
Postamos as mesmas fotos de comida
e a legenda retórica
de que aprendemos com isso.
Perdidos
hábitos, parentes, empregos,
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀perdidos
casamentos, calendários, velórios.
Uns tentamos ainda rasgar
a pele dos próprios presídios.
⠀⠀⠀⠀O tempo
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀buscamos ainda
sentido.
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀O tato
tanto
tempo proibido.
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀O outro
tão necessário, tão inimigo.
Ainda dependentes e fartos de
dispositivos,
deixamos escrito
na nuvem
aos nossos filhos:
talvez não sejamos melhores
e não queiramos falar nisso
e não estejamos inteiros.
Carregamos ainda
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀arcaicos desejos
de amor e de toque
e mais alguns vícios.
Passamos adiante nossos indícios,
a mesma antiga busca
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀de sentido.
Em que pese
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀e ainda
estamos vivos.
Luciana Henrique escreve poesia desde que se lembra. Pesquisa poesia como doutoranda na Universidade de Brasília e ensina literatura e língua portuguesa no Instituto Federal de Brasília. No instagram, publica seus poemas no @poesia_sem_chao, com imagens da designer Mari Henrique (@mari_que). Revisão de Anna Raíssa Guedes.