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Fernando,

por João Oliveira
Fotografia: Bonde em frente a Igreja do Santíssimo Sacramento da Antiga Sé – Augusto Malta (Acervo Instituto Moreira Salles).

João Oliveira (1989, Salvador-Ba) é artista visual, graduado em artes visuais pela EBA-UFBA, onde também fez Mestrado em Processos Criativos. Micronarrativas, farsa, discurso amoroso e desaparecimento, são alguns dos interesses de sua pesquisa. Participa regularmente de exposições individuais e coletivas no Brasil e no exterior, além de ter recebido prêmios e bolsas de residências por sua produção artística.


fernando,

tão inteligente escrever poemas
para alguém que não merece quanto
tentar ensinar um peixe a voar
afinal, o que importa
se o peixe não nasceu para voar
se ele não tem asas, se não tem os pulmões
para respirar fora da água e se o ar
é um elemento tão estranho para ele
se ele não fuma cigarro


você me aconteceu naquele ano,
é mais ou menos como
a eterna angústia do munch towards the forest I:
verde,
rosa,
amarelo,
preto,
chartreuse
—  ou ainda como um pescoço de marreco iridescente
que brilha mais ou menos
a depender de quão rápido você
move as mãos bloqueando o sol sobre suas penas — 
e violeta,
sobrepondo árvores inamovíveis como
naquele filme do fantasma preso na casa
que habitava quando tinha um corpo
que é como ouvir o joe pass cavando
as notas na guitarra como o munch cava
a madeira dura
deixando as árvores um pouco menos inertes menos totêmicas
 — suas mãos tinham muita pressa
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤserá
que você
ou alguém
além de mim
já pensou nas mãos do munch,
nos dois tiros
que disparou contra a própria mão
e estropiou dois dedos — 
sobre um papel que parece pergaminho,
propriedade de uma importante coleção particular
que eu nunca vou poder ver bem de perto,
como via os furinhos na sua pele,
a não ser reproduções em livros
que eu poderia furtar se ainda existissem livrarias
ou em telas esmaecidas e muito opacas,
mas seria tão grosseiro pois não fazem justiça
à precisa topografia de uma cor
e eu não sei muito bem o que isso quer dizer


paredão

aquele dia no mar selvagem,
blocos de sal em minha boca,
o isqueiro molhado
o sol da amaralina
em minha cabeça
the boy hidden in a fish tatuado no meu braço esquerdo
o peixe
descamando minha pele quente,
uma frase imensa em minha boca,
uma carambola verde
e a espuma branca de sal em minhas mãos,
o mar,
em minha cabeça
o sal da amaralina
se desprendia na vazante
teu print no meu celular
eu olhava, vez ou outra,
a tabela da maré alta às 16h04
a nuvem de sal,
o sal incrustado atrás de sua orelha
quem mora na amaralina sabe
das segundas-feiras,
um pensamento:

a minha cifose sobre os teus joelhos
responde a origem dos cinco oceanos

choro aos teus pés



pedoró

um sol, uma lua em escorpião
cinco casas,
teu mapa aberto sobre a mesa
eu leio como daquela vez
em que tentei aprender japonês
e não entendi nada
das projeções cartográficas
e lembrei da aula de geografia, 
qualquer coisa como ‘nenhum mapa será exato’
escrevo em tiras de papel
meu endereço
com pincel e tinta vermelha
eu saio do mapa
escrevo todos os meus desejos no chão
na esperança de que você leia:
eu moro no edifício flama, 
eu moro aqui no chão
com a fé de que você venha,
na expectativa de que você siga a linha
e não desvie pra tóquio
tentando aprender japonês
e encontre um rapaz que fale muito bem 
sua língua e vocês dois juntem as duas metades
dos seus dicionários, dos seus mapas,
e criem um diálogo entre eles,
fazendo as linhas, curvaturas, se encontrarem
num desenho que vai ser, aposto, 
uma dessas gravuras eróticas do período edo,
pedro
é shunga o nome dessas estampas
sabe
eu também sou sabido se você deixar, se você não for
um principezinho chato, eu te escrevo um livro erótico
de poesias nunca publicadas
só porque sou lascivo, só porque
estou me esforçando pra te deixar sem resposta,
cheio de vontade
eu sei,
comecei esse jogo sozinho e se eu for derrotado, mente pra mim, cara
fiz o japão na minha sala, organizei a primavera,
comprei um dicionário, chamei-o de deus, 
aprendi a dizer teu nome desenhando ideogramas
não é fácil segurar o lápis vai pesando teu nome
um gafanhoto-verde
não é fácil, teu nome tem muitos nomes eu beijei todos eles
beijei o teu japonês beijei todos os homens que beijaram a tua boca 
antes de mim e tive ciúmes de todos — eu prometo que dói
até você esquecer e depois de ter esquecido, mas passa,
pedro
quero te fazer perguntas, você não sabe,
como é mesmo o nome daquele livro que te deixou espantado
e te fez não querer atravessar a noite sozinho, na companhia dele,
então você veio, sacou da mochila o livro, me fez passear suas imagens
que eu nunca tinha visto antes, um bocado
era sem romance, outras não. eu pensei nas enguias no fundo do tanque,
era assim que eu seria, se você fosse embora pra tóquio, sem romance
e eu ficasse daqui, do outro lado do mapa, passeando tuas imagens, 
por que deus? só de raiva eu te enviaria um retrato e escreveria assim:
boa noite, pedro, vai dormir agoniado, vaguear nos meus pixels
agora que não tenho mais cotovelos
chama deus agora
que a palavra já fechou os olhos
e foi embora com deus


você foi embora,
uma lagoa desapareceu e eu
tô tão cansado que nem tô nostálgico

ainda ontem passei pela praça do budião
na rua do balneário, o sacolão fechou
uma lagoa desapareceu, você foi embora

infindáveis equívocos
enchem as prateleiras de livros
ciclones
tsunamis
estômagos de peixes
nas caixas
na esquina, correntes
ou era uma corda que eu queria
arremessar até você
que me fez um retrato, eu só vi
a faísca da nike
irisada no teu short
a imagem,
era assim que tinha de ser
agora
eu caminho, eu ouço,
abro os olhos

os grilos nas ruínas que pintaram de verde
o cal desfazendo os monolitos de sal
daquele dia eu no quintal
a cola
em minhas mãos
o horizonte indeciso e você
caminha pra dar a volta ao redor de si mesmo
e tornar à rua do balneário, o sacolão fechado,
eu me pergunto,
eu caminho, eu ouço,
fecho os olhos na rua da malásia
com o corpo todo tingido de laranja
falta apenas uma placa de inflamável em mim
e da espuma que espoca do meu rosto nascem
cachoeiras
uma lagoa
em agosto 
escrevo 55 afirmações como esta que diz: falta

durante 05 dias
desenho aquele dia
em que a lagoa secou
fomos àquele bar onde nada mudou,
dormi lá, vim pra casa, fiquei velho
e até pra tomar uma cerveja, não saí mais do meu bairro


how stuff works

eu gosto do jeito que você pensa
é como um livro que termino
fechando num mistério
no qual as últimas linhas apontam
para a promessa de um entendimento futuro
o livro, e você, sempre me dizem um dia
um dia eu vou entender
como é possível que seus óculos
pensem junto contigo, bem costurados
a esse osso torto que você traz no nariz um monumento
que se dobra
como você dobra as chapas de cobre
formando ângulos nunca vistos
e eu penso em dunas, mas você me diz não
me coloca pra fora do studio
nós dois sentamos no muro
— é a pausa do dia fora da sua cabeça —
e você
pugilista em repouso
desdobra tudo o que digo como
se cada palavra tivesse uns óculos dentro
é como dizer dos óculos mesmos:
há lunetas que é preciso limpar muito bem
para ver
ㅤㅤㅤㅤde perto
combinar as lentes
aí então me perco nessas letras que você vai movendo
pequenas elevações de terra que você trouxe de maceió
nos pés
a areia na minha cabeça fazendo as sete dunas
de um videogame que é preciso passar de fase
— o prêmio é um pórtico aberto no qual nunca cheguei —
eu não acompanho o teu jeito de andar um pensamento
é duna atrás de duna
caminhar contigo sempre parece uma queda
mas você nunca cai

a minha vitória é desamarrar teu tênis


Fotografia: Bonde em frente a Igreja do Santíssimo Sacramento da Antiga Sé – Augusto Malta (Acervo Instituto Moreira Salles).

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