Flora Miguel é jornalista, trabalhadora da cultura, poeta. Tem textos esparramados por veículos literários no Brasil, Portugal e México. Assina a canção “Pela Cidade” em parceria com o duo A Transe. Seu livro de estreia, “tempo sem cruz”, é um lançamento da Editora Primata.
formiga
1
estender a canga
intervir
no trajeto das formigas
por entre as dobras
de chita
travar batalha
minimalista
2
A estudante de Pós-Doutorado em Entomologia do Instituto Na cional de Pesquisa da Biodiversidade Florestal, Luana C., foi res ponsável por um estudo inédito que monitora o impacto de uma fábrica têxtil de larga escala na fauna das formigas
3
desde a infância Luana C.
foi extremamente sensível
fazia dança aeróbica e clássica,
brincava sempre de teatro
– atriz é porvir
desenhava histórias sobre
seres fantásticos
em pequenos recortes
de papel furta-cor
a cada ocasião considerada especial
compunha música própria
letra e melodia
e se fazia um dia de sol e calor
coreografava a criação
costumava dizer que seria cientista
mesmo com a desenvoltura para as artes
em pura combustão
passava horas observando as galinhas
do quintal
conversava piu, piu, piá
no balanço de pneu
pendurado em enorme tronco de árvore
anotava suas considerações
num grande caderno de folhas mistas tons
de terra e céu
e encadernação feita pela mãe
com maquinário próprio
instalado na lavanderia da família
das formigas,
ao interagir forçosamente
mas ainda com o notório embaraço,
admirava a elegância:
folha que é escudo!
graveto que é lança!
4
Luana C. morreu
já tem sete anos
o rim perfurado
pela bala do milico
policializado
morreu e eu a procuro
procuro e a reinvento
que a atriz merece o melhor
papel
tons de terra e céu
pneu nunca de moto
parada em nenhuma autopista
prêmio Nobel:
melhor cientista
5
a gente sem escudo
nem lança
sem cortina sem regente
o furo agudo estridente
no canto da nossa barriga
a polícia mata a gente
como a gente amassa formiga
boas-vindas
primeiro o susto
primeiro desterro
primeiro um tom inaudível
um raio espesso
dentes em festa se chocando
primeiro
na dúvida não me peça nada
o sol entra na vegetação
só um pinheiro acima e logo
toda a vegetação acima dele
talvez ainda brilhe um pouco entre
as folhas menos robustas
e lá vamos nós de novo dizer o incorrigível
me amar não é sua (melhor) resposta
to love me is not your (right) answer
ou como me disse a cigana eres su propio templo con una voz Mercedes
Sosa y lentes cintilantes en los ojos
é aí que me perco, árvores olhos Mercedes Sosa tão poucos ossos no peito meu peito é um quadro de giz
com o desenho torto de um rio por onde nadam
cardumes extremamente lentos
preguiçosas criaturas que buscam ganhar a vida sem dê érre hora
marcada livros emprestados e jamais devolvidos
vagando pelo percurso entre a memória ruína e o próximo carnaval
enquanto meus rins escaldantes esquentam as suas espinhas
por puro prazer
o sol se perde na mata bem no meio da cidade
igual às crianças em parques de diversão que de
tanta euforia
somem dos pais
no clube que já vai fechar e por isso o salva-vidas grita ACABOU e
você finge que não entende
porque é conveniente esquecer o português
você me admira
você me venera
você me quer assim bem chá inglês & outras post lembranças
contrapartida
rajadas de ideias pixeladas
notícias terrivelmente sérias
hoje vamos apenas
ver o sol escorregar
Foto de Leopoldo Cavalcante.