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língua

por Bruno Canabarro
Desenho de Ariyoshi Kondo para ilustrar os poemas de Bruno Canabarro.

Bruno Canabarro é artista-professor-pesquisador. Ator, performer, dramaturgo, escritor, professor de arte e leitura na rede municipal de ensino de São Paulo e doutorando em arte pelo Instituto de Artes – UNESP. Ganhador do prêmio “Educador em Destaque” promovido pela Secretaria Municipal de Educação, em 2022. Dedica-se à pesquisa de questões que friccionam dissidências, arte, literatura e educação para compor suas práticas.


a minha língua é a vírgula
que me separa de mim
e me conecta ao mundo.

boca,

eu vi o nó que havia dentro
quando você abriu a boca
parecia que alguma coisa
em você estava do avesso
enquanto calmamente
você preenchia tabelas
longas
longas
longas
e depois engolia
toda água
que foi se acumulando dentro
no entorno do nó eterno de tanto prazer.


palato,

conforme consta nos autos
imagino que
cada pessoa que contém em si
uma língua
deve
apropriar-se dela
usufrui-la
estende-la
para quem sabe
um dia poder
lamber
com vontade
a própria cara
lambuzar
cada pedaço de pele
e ainda
com mais força
chupar
os ossos
mais profundos
do seu corpo
rasgar palato
e fazer de si mesmo
uma espécie de sorvete
ilha
prestes a derreter
no inverno
alimento
prestes a apodrecer inteiro
se não estiver inteiramente
úmido
se não estiver inteiramente saboroso.


mandíbula,

espero conseguir narrar a trajetória
errante
de um homem calado
este que
de tanto que já falou na vida
entendeu que cerrar os lábios
adormecer as mandíbulas
pode significar
estar mais atento
aos fatos
ouvir o que nunca falou
sentir aquilo que pensa
convocar seus espíritos
vomitar os incômodos
e finalmente
poder passear pelo bairro
com a felicidade de quem
nunca tem nada a dizer.


saliva,

o que não digo
corrói por dentro do abismo
do meu estômago
como se fosse a parede de um
útero
a parede de um útero onde eu
feto
nadei na saliva da minha mãe
quero falar da saliva
eu sinto demais e isso me faz babar
boquiaberto
e alucina minha cabeça inteira
paraliso como quem nunca soube andar
de um lado ao outro
mas andando e babando
nadando
cavei um rastro no chão da minha jornada
tão fundo que poderia até
afogar dois caixões
língua e corpo
extremamente distantes
exuberantemente longos
exclusivamente gastos
quando um corpo gasta a língua até
não ter mais para onde ir é aí que começa.


dentes,

viajei esperando descobrir
um rio que pudesse mergulhar
minha língua inteira
adormecê-la
e depois
ressuscitá-la
sonhando com a transformação
concreta de uma nova
comunicação
para que assim
consiga desvendar todos os
mistérios
de tantas vozes
que gritam no mundo
e um dia irão descobrir
que para se ouvir
não é preciso usar a língua
mas sim
os dentes.


prazer,

ele pediu para conhecer a
minha língua
eu mostrei
cada pedaço dela
tímida
pequena
sem nome
ele queria mais
estudar
decifrar
minha língua
usei-a para dizer que
ela é a responsável por
toda a minha fome
minha língua é quem me come
me devora
ele queria participar
do prazer que eu tinha em me
retroalimentar
da melodia que
minha língua
fazia enquanto a gente cantava
não foi o bastante e ele
tirando da bolsa grossos livros
me apresentou
sua língua
macia e vermelha
de tanto esgarçar teorias
de tanto perfurar pensamentos
de tanto maldizer os clichês
minha língua já é mãe
eu insisti em dizer
minha língua já é mãe
eu insisti em dizer
ela só diz ensinando
talvez arrogante
mas é doce
o que ouve
ele não entendeu
minha língua
não se explica e ele
na confusão
entre a minha língua e a dele
querendo a todo custo
uni-las com troca-troca-troca
bateu um papo com meus olhos
que também já aprenderam a falar
ensinando.


fala,

estou aqui para te ouvir
me prometa cautela
eu te juro segredo
você e eu
somos a ponte essencial
para a organização
fala
que eu não irei recriminar
seu ritmo
seu timbre
o hiato da sua
respiração
mas eu preciso que fale
de uma vez só
num susto
sem pontuações
fala
rápido
igual nos beijamos ontem
rápido
como fast food
é como eu como
o que você fala
rápido
porque não há muito tempo
para ouvir
degustar
e partir
fala
logo
preciso
do
contato
e vou te contradizer
sem medo
porque a gente
é uma ponte
de um lado
seu conteúdo
do outro
minhas negações
fala
eu não sei o que é
nem se quero ouvir
mas
fala
criei uma personagem
pra você
se apresentar
para mim
sem precisar se delatar tanto.


afta,

essa gente
me usa com seu dialeto
que não é nada além
daquilo tudo que eu aprendi
na escola
que é tão maior
do que tudo que me foi ensinado
que me comove
e se apropria de mim
proponho então
alguma outra forma de expressão
que de violência
já está cheia
de tantas regras impossíveis
e exceções que cansam
a beleza de cada
fonema
fonética
fluxo
contínuo de gestos
língua mátria de uma gente
que nunca aprendeu a falar
que sempre soube falar
e fala
comunicação explosiva
brasileira
nova ainda
novata
não fixa
em transformação
doente e doída
um caroço no meio da língua
dessa gente que fala
bonito
ardido
mesmo com uma afta aberta na boca.


verbo,

existem poucas coisas que
me assustam ainda
executar
cumprir
vigiar
pouquíssimas coisas que
balançam minhas mãos
e me abalam
adorar
sonhar
escrever
algumas ainda que
arrepiam todos os cabelos
fio-a-fio
vingar
lutar
sentir
outras tantas que
vivem sussurrando
em meus ouvidos
continuar
desistir
silenciar
e ainda aquelas que
melhor descrevem
minhas vontades
libertar
correr
voar
e tantas outras que
ainda não conheço
e por isso
não sei escrever
mas se soubesse
faria assombro
que arrepia gostoso
minha coluna
é bonito saber que há
muito além daquilo que
sou capaz de imaginar
verbos capazes de
arranhar a garganta
explodir meu peito
desconhecer o ódio
que eu já conheço.


linguagem,

ele está procurando uma língua muito específica
aqui não vai encontrar
uma língua que ao mesmo tempo
amacia seus ouvidos
e emite mensagens
língua passível de mudanças
aquela que ainda nova é rosa
língua que possa morder de vez em quando
e depois beijar
uma língua que consiga descrever
catástrofes com poesia
soletrar desastre em diferentes alfabetos
temer as frases que terminem com fim
quer descobrir sua imensidão
já que na boca ela quase não cabe
quer lhe emprestar outros espaços para descansar
ser teu apoio e oferecer um
guardanapo ao encontrá-la mole
e pingando num canto
quer segurar a língua pelas pontas dos dedos
analisar sua forma
seus movimentos
o quanto consegue tremer
e desaguar
é melhor não se esconder por muito tempo
boa língua precisa ser vista
usada
falada
ou então morre
uma boa língua precisa se encontrar com outra
línguas-com-línguas
está procurando uma língua que possa
falar confortavelmente e te chamar pelo nome
uma que te use ao passo que é usada
uma língua que se fosse móvel seria um sofá retrátil
uma que entra e sai com facilidade
como uma poltrona de couro para descanso
a busca de uma língua
que seja ideal para você não é rápida
exige tempo
exige espaço
exige vocabulário
é possível que encontre uma língua que
geograficamente
sangra
foi expulsa
exposta
extinta
está à procura de algo que não existe
poderia dizer
para se localizar use um mapa
um globo
uma bússola.
a língua não vai te achar
não insista
está perdido
a língua que você procura já mordeu a carne crua
de quem ousasse lhe transformar
essa língua é dura
o roubo de uma língua é de uma monstruosidade
impressionante
talvez
quem sabe
um dia consiga entendê-la
uma língua precisa de tempo para amadurecer
como fruta
te falo isso com uma língua
que nunca foi questionada
mas que agora mesmo
se meteu entre meus dentes.
nada pude fazer
a não ser morder a língua
me calar
ele está procurando uma língua que não existe
aqui não vai encontrar.


Desenho de Ariyoshi Kondo.

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