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Passeio, poema de Pedro Naccarato

por Pedro Naccarato
Foto de Anna Carolina Rizzon para ilustrar o poema de Pedro Naccarato.

Pedro Naccarato nasceu em 2001 na cidade de Poços de Caldas/MG, e se mudou para São Paulo para estudar filosofia. Não tem muita coisa publicada por aí. Entusiasta da flannêrie e integrante da organização Cartografo, dedicada a exercícios coletivos de reinterpretação e instrumentalização de algumas ideias do filósofo Alain Badiou.


PASSEIO
(prólogo)

nós
que fomos criados
no exercício rigoroso da crítica da crítica crítica
que somos versados na transvaloração quotidiana dos valores e
no redimensionamento antropológico dos tropismos ocidentais
nós que praticamos ritualisticamente a profanação e que prezamos
primeiramente
pela politização da arte
sem todavia deixarmos de nos atentar ao fracasso do projeto moderno
ㅤ ㅤ  ah! maldito século, eppur se muove – que dizer?
merda
MERDA, das schauspiel dauerte sehr lange,
julio cortazar dos meus sonhos, no encontramos a la maga nel mezzo del camino
tinha uma pedra, um bloco imenso de silício, e o incendiamos como se fôssemos loucos
e éramos loucos quando andávamos por aí com um potinho cheio de merda cuidando pra
ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ [não deixar crescer nenhuma flor

não, não toleramos as flores: o poema é uma relação do real –
o sonho azul é nosso desde o princípio
ㅤ ㅤ  pulamos amarelinha por cima do abismo


(um)

nas mãos
trazia
concentração brutal das coisas tremendo nas mãos :
lagartixas subiam pelas paredes dos prédios em volta, a comunhão do gênero em torno
ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ [do fêmur curado
eu já havia enxergado pedrinhas muito pequenas sendo esmagadas pelas charretes,
ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ [imensas
carruagens carregadas
de significado até o máximo grau possível… e
como era magnânima
a dispersão mítica dos elementos!,
cidade ultravioleta dentro as poças
oblíquas – merda,

a minha língua é fraca,
eu quero me esparramar por dentro da terra como uma das vagabundas do poema do
ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ [ovídio
alguma vez você já olhou no fundo dos meus olhos?

tinha a impressão de escutar baixinho o zum-zum das moscas nas noites de verão,
indecifrável noite, interminável,
eu a procuraria desesperadamente pelos terrenos baldios; no cinema, orfeu já não
carregava mais a morte no olhar.
Até hoje:
as vinte e oito marcas da menstruação pré-histórica, matemática pura do gesto :
i – shan – go

os pirahã (pi – ra – hã) possuem os axiomas de peano (pe – a – no, pea – no?) e
contam como cantor, contam como cantam : matemática pura do gesto.

a métrica: peano e cantor contam até dez.
a liberdade criativa da imaginação. a magia inconsequente e convulsiva da
beleza.
o poema, Absoluto.

Os comunistas faziam muito barulho, entregavam panfletos, entravam nas lojas e, por
ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ [baixo dos balcões, incendiavam papeizinhos.
Quando vc desceu do ônibus eu entregava
panfletos, procurei enlouquecid pelas letras derretidas no chão.
há quinhentos anos, os panfletos / há vinte mil anos, i – shan – go /
a comunhão do gênero em torno do fêmur curado.
matemática pura do gesto.

Você trazia nas mãos um vaso vazio. Trazia,
nas mãos.
a carne da palavra, matemática pura do gesto.
(Que é isso
que sobe do deserto como colunas de fumaça?)

Você
trazia nas mãos um vaso vazio,
procuraria pela
letra
no chão.
Letra,

carne da palavra. eu sou um muro,
eu. Beija-me com os beijos de tua boca!
procurei pelas letras no
chão.

o teu umbigo é
taça
redonda.

a menstruação pré-histórica :
conta, canto, cantor. nessa ordem: eis a alegria do poema, tua cabeleira cor da púrpura!

Quando
me deu a mão
e começamos a andar. O vaso
vazio
na outra
mão.
Passeávamos,
uma neblina cobre a
cidade. Os prédios
se ergueram
por sobre a neblina, aviões
carregavam placas de proibido barulho depois das dez
e, quando algumas letras caíam, tínhamos de desviar pra que não acertassem os nossos
ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ [ombros.
Enfiei a mão vazia no bolso e peguei um cigarro.
O Peixe flutuava em cima da nossa cabeça, olhava bem para a ponta dos pés. De repente,
era o Lobo, e não deixou mais de ser.
Ele desceu pra me pedir um cigarro
eu disse que
era o último
ele
voltou a flutuar.
Se assustou com o estrondo das letras caindo no chão, depois o borbulhar da carne
esparramada. Você
me puxou pelo braço, viramos a
esquina.
Ao nosso lado,

a porta.

Na marquise, podia-se ler O Futuro. Gritarão
lá de dentro Deixe O Vaso Em Cima Do Capacho. O que estava escrito no capacho,
não se sabia. Nem O Trabalho Liberta,
dirão. E com As Duas Mãos por cima do Rosto, você dançará A Orgia Das Lagartixas.
Eu rolarei de um lado para o outro da mesa, me contorcendo enquanto espumo pela
Boca a Carne Roxa Das Letras que encontraremos nas Fendas Das Calçadas. Antes de
ontem, há vinte mil anos se distribuirá O Panfleto.
Enxergo uma corda
frouxa,
sua ponta desfiada apontando em infinitas direções. Em última instância não
se trata da

história. Eu irei me levantar em Silêncio.
No fundo dos seus olhos. É insuportável a paixão que arde no fundo dos olhos.
Quando você desceu do ônibus, eu me joguei aos seus pés tão completamente.
Eu beijei as calçadas e inalei
a fumaça de todas as letras,
as letras
todas. E
beijei
as pontas dos sapatos, beijei
as pernas, as Pernas terão O Gosto Do Silício,
na Ponta Da Língua encontrarei Em Silêncio O Silício Incandescente,
suas pernas inteiras na ponta da língua, a virilha entre os dentes,
eu me contorci de uma ponta à outra da rua, farejava loucamente o períneo
molhado, car’amig dolç’e franc,
de repente era o Lobo e não deixou mais de ser.

Entoarão A Mínima Épica (afora Futuro dentro,
o espaço todo se encolhia por entre as cores impossíveis das casas). Caminhávamos, e as pessoas em volta eram redondas, rolavam por baixo dos nossos pés e as chutamos como se fossem pedrinhas, até o fim da rua de um pé para o outro, o riso alucinado e você tapava os ouvidos para não escutar os gritos de dor ecoando por entre as paredes das casas, as vozes insuportáveis crescendo por detrás das janelas das casas – desesperadas, as casas, cascas recobrindo o espaço por onde caminhávamos como dois olhos no gramado imenso onde a noite corria pelos buraquinhos das minhocas, e os gatos trepavam com os olhos bem abertos e corriam de lá pra cá, sumiam por dentro das paredes ocas das casas – quero dizer a eletricidade sanguinária do silício, mas dizer isso já seria fazer uma concessão grande demais, é o contrário de tudo isso, caralho! – se
sua mão despontava da superfície do terror
e não
eu nunca havia visto uma mão tão trêmula um corpo todo ele tão oblíquo,
despontasse do terror mais profundo ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ ㅤ : você
afundava as mãos
na terra a cabeça entre as mãos, e isso é uma espécie de lembrança nossas mãos
enterradas até onde o pulso pulsa e
ㅤ ㅤ  – eu te amo desde onde os seus olhos inchados todo o sangue emperrado
nos olhos e o pulso já não pulsa aqui e
todo o amor,
a noite metafórica, a metáfora noite –
um modo de tornar tudo
indistinto, é preciso apertar bem os olhos,
fazer o sangue correr bem nas pálpebras, encharcar bem a terra com nosso suor,
cuidar para fazer morrer
a terra, a metáfora-noite os olhos bem abertos e isso :
é uma espécie de legado – a sombra de uma estrela:
nas minúsculas gotas de chuva descobrir
de que tamanho tem de ser nossos olhos para enxergarmos as coisas
e não
eu nunca havia visto as coisas tão trêmulas
um corpo todo ele tão oblíquo e
trêmula sorve
a mão a parte de fora das coisas,
na coerência rasa da fumaça que as envolve
: que no mais alto da noite se interrompa meu canto e o assombro das coisas na sua pele
interrompa meu canto, as coisas inescrutáveis cavavam sulcos na língua,
e da terra subiam lagartixas até o topo dos ombros –
caracóis descem até as pedras roxas
trazendo da cabeça a contenda cósmica infatigável
e eu lambia alucinado as pontas dos cabelos,
terra até o pescoço : uma artéria tátil se fechava por sobre a boca
maníaca, manto terrífico, brevíssima seiva roxa da bruma


(dois)

eu havia visto cair a chuva oblíqua em uma ponte que balançava de um lado pro outro,
os caminhões passando, carregando absurdas
esculturas
em gesso de bezerros decepados, tínhamos sentido o cheiro
insuportável saindo de dentro
dos buracos. o preço do botijão de gás
cada vez mais alto o gás
levando os caminhões até o ponto mais distante
ㅤ ㅤ ㅤ:  ㅤ ㅤvocê reluzia impossível
por cima de tudo isso, e por baixo de tudo
você reluzia, no fundo das coisas
eu podia entrever no fundo das coisas
a cisma das imagens, sisma mágica das imagens desimaginadas,
e toda uma vida dedicada à poesia e o meu rosto mergulhado numa poça de gás
não teriam me servido de nada, seu beijo
colorindo a minha língua
da cor do gás, o preço do gás
cada vez mais alto, e nós enchíamos as nossas gargantas da mais pura gasolina,
Seríamos de Silício, você
era o próprio nome encrustado do silício nas palavras repletas,
reluzente insistência noturna da épica despedaçada

eu que balançava os braços de um lado para o outro
a sua língua estendida como um lenço por cima do diafragma
diria que Noite é noite da outra noite
dirá a Noite
você dizia
não a do Poema
merda
isso já não aqui
quero dizer
a língua na ponta das mãos
pra lá e pra cá a noite
não pelo Poema
a noite
aqui
pra lá e pra cá
ali
a Noite
os braços
Nós Não Podíamos Ficar Parados
você dizia
Dizia
isso já é fazer uma grande concessão
argh!
é impossível
no meio da noite
do Poema
A Noite Pra Lá Do Poema
não já aqui
é impossível ficar parado você
dizia
E Crescia Como Uma Imensa Estátua Elétrica
a língua aqui não já A Língua seria demais
Já Seria d – e – m – a – i – s
porra, eu vou fazer um escândalo
não
é outra
coisa Outra
aqui

Bem Aí
ou
tra


Foto de Anna Carolina Rizzon.

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