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pholcus phalangioides

por André Merez
composição 43 para andré merez

suposto retrato

como essa distância
que pula os muros e
alcança o outro lado,
eu colo as fotografias.

vejo os olhos e cabelos,
as curvas de tecidos, as
covas de um sorriso e
tudo mais que, fixado,
resta em papel e tinta.

não mais que uma falsa impressão
de uma falsa lembrança que foge
no desbotado do tempo corroído.

o papel fino entre os meus dedos
é tudo o que me resta daquilo que
um dia foram mãos espalmadas e
digitais bem conhecidas.

não fica mais nada de íntimo,
nem uma caligrafia, uma data,
qualquer rabisco de uma esferográfica.

fica só essa distância que me amarga,
fina entre os meus dedos
e cada vez mais apagada.


a um pássaro morto

céu vazio de pássaros,
o suposto voo perdido,
o dia alto em périplo e
o que deve se recolher.

outros céus agora noturnos e os
silêncios de madrugadas e pousos.

o aspecto triste dos pássaros,
as horas vazias, nos telhados,
sua plumagem de memórias
e a natureza fria do vento sul.

voo perdido
vaga no céu.
voo perdido
lugar de mim.

lugar de vazios e supostos voos.


na última sessão do dia

dorme,
dorme tudo o que se retira,
a fatia do dia, a faca, a fala
e o que é da vertigem real.

dorme,
dorme o que queria, alçava,
a morte esquecida na tarde,
a triste tarde de sonolências.

dorme,
Morfeu versado em Thânato,
esquece o dia, abraça a noite,
a sua mãe desesperada e fria
também dorme e, ao dormir,
alcança a eternidade desejada.

como jamais se dormiu,
dorme todo, dorme inteiro,
fecha esses olhos definitivos,
encerra o mundo e seus ares,
encerra a fome de vida, a lida
e vai descansar de si mesmo.

procura no sono absoluto
a absoluta ausência de si,
habita o longe, o longo e
vive esse mistério póstumo.

medita, monge transfigurado,
na última sessão do seu dia e
no lótus perdido já reclamado,
dorme
⠀⠀⠀e morre
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀e descansa
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀e mais nada.


concessão

este tempo em que vivo,
a suposta e adivinhada
permissão para vivê-lo.

seu gosto, textura e cheiro.

os avanços e vertigens,
seus meneios e demoras,
suas horas
abruptas,
seus olhos
acurados.

olha-me ele
mais que eu possa sabê-lo.
admira-me,
admiro-o e
baixamos ambos nossos olhos.

prefiro não o calcular,
quero ser no tempo,
⠀⠀⠀⠀⠀ir no tempo
⠀⠀⠀⠀⠀para não escravizá-lo,
até não me escravizar.

e breve,
e longo,
e música e vento,
compreender sua natureza de corcel livre,
sua feição de morte, seu ar de nascimento.


Pholcus phalangioides

perde-se
e perder-se é um sistema de retornos
cada mínimo intervalo entre as linhas

tece-se
e tecer-se é uma forma de ser preso
em gesto leve flutua espécie pholcus

voa-se
e voar-se é também aracnídeo frágil
fino como quase nada ergue-se asa

pousa-se
e pousar-se é atar-se à presa muda
repetido gesto enrola em quelíceras

finda-se
e findar-se, digestão extracorpórea,
é ir-se do inseto ao sentido inexato.


André Merez nasceu na capital paulista em 1973, iniciou como letrista e
contrabaixista das bandas Cathedral e Siso Símio nas décadas de 80 e 90, cursou Letras e fez pós-graduação em Língua Portuguesa na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Na graduação realizou pesquisa sobre o discurso do poder na obra de Plínio Marcos e na pós defendeu tese sobre as relações entre o processo inferencial e as questões de interpretação de texto na verificação de aproveitamento de leitura. Leciona Teoria da Literatura e Gramática há mais de 15 anos e desenvolve pesquisas sobre música, artes plásticas e poesia. É autor do livro Vez do Inverso (Editora Patuá) 2017 e mais dois livros em processo de edição: Perfeição Acidental (2019) e Poesia Necessária (2020). É editor da Revista Poesia Avulsa e já teve seus poemas publicados em diversas revistas de poesia e suplementos literários no Brasil e em Portugal, entre eles Mallarmargens, Gueto, Poesia Primata, Germina, Ruído Manifesto e Diversos Afins.

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