Wellington Amancio da Silva nasceu em 1979, em Delmiro Gouveia, Alagoas. É professor graduado em Pedagogia e Filosofia, e tem mestrado em Ecologia Humana. É membro da equipe editorial da Revista Utsanga — Rivista di critica e linguaggi di ricerca. É editor das Edições Parresia. Publicou-se Apoteose de Dermeval Carmo-Santo (2019), O Reneval (2018), O Quasi-Haikai (2017), Epifania Amarela (2016), Distímicos e Extrusivos (2016), Diálogos com Sebastos (2015), Primeiros poemas soturnos (2009) As fiandeira tramam cores que doem nos olhos (2020), Elegia da Imperfeição (2001) e Os outros, sertão de argila escura (2021). Há publicações suas nas revistas Mirada, Ruído Manifesto, Germina, Gazeta da Poesia Inédita (Portugal), Magma (USP), Revell (UEMS), Letras Raras (UFCG), Literatura & Fechadura, 7Faces, Eutomia (UFPE), Sítio (Portugal), Tyrannus Melancholicus.
as cigarras
poderoso uníssono
trombetear contra o tempo
um cio que racha o logos
e mais santo que o pudico
é o fervor da cópula dos artrópodes
no horizonte
o alvor amarelo ignora
o animal que ruboriza
a cruz de constantino pavor
é algo como o amor de cicadideos
tecer a queda de quem pensa
poder escapar do chão
um silvo calmo agitava as folhas
indiferente ao rei bicudo
as cigarras cantam
e ele não retorna
perde-se pelos caminhos
de onde veio/édipo duvidoso
a invasão das formas angulares
uma geometria de superfície lisa
a linha precisa do plástico duro
em zeros de um ponto a outro
ruborizam os galhos desgrenhados —
transformar as coisas /puras/
em lixo no devir
depois a verdade universal dita em três emojis sorridentes
o circuito aberto agora/
resistem as cigarras num dorso duro
todos os mortais as escutam numa
nota alongada —
o reverberar contra a repetição
das máquinas de fabricar objetos saturados
depois um homem é finalmente
liberto ao conhecer a verdade
na tribo pirahã/o desfazer das
velhas dívidas sem solturas/as cordas/
o milagre do nó desfeito
em daniel everett
— “a língua deles não tem passado nem futuro”
⠀⠀e faz calar as coisas
— cena esfumada na
⠀lente de uma olympus trip 35
….
⠀agora mesmo a película finíssima
eles só sabem sorrir para as câmeras
sim⠀eles sorriem
alva harmonia
imersos num deleite de amnésias
esqueceram que andré thevet
desenhou cunhambebe de barriga cheia
de crua carne portuguesa
⠀certas coisas retornam com veste nova
envoltos em sua
imagem⠀aquosa⠀⠀especular
não pressentirão o destino
a desdita a antropofagia do tempo
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀no espelho d’água
⠀⠀⠀⠀⠀⠀deslembram-se que
⠀⠀⠀⠀⠀precisamos
⠀⠀⠀⠀de um aumento salarial
⠀⠀⠀para o aluguel do morgue
também a nossa
vez de ser ocidente
no início
das imitações
uma epifania
como da vez em que
homero
vestiu-se de túnica negra
para escrever/inscrever
o ferro a guerra o sangue
dos tempos
em sombra e nó em fogo
adveio-nos uma luz eriçada
como estrela e silabas
por cima da nossa cabeça
a arte de narrar em português
à porta de casa
no alpendre
um fantasma/ e foi-se
perdendo-se do que dizer
o luso fora dissintonia entre nós
bichos-do-mato
pais de marimbondos
contensão de um étimo!
cena estrambólica ao redor
da sorveteria de dona tina —
o zoon aristotélico sufocado por toneladas de lógos
o que ele é numa redoma de posturas?
a boca ressequida e um grip de breu na garganta
⠀⠀⠀⠀⠀a litania diuturna (o país debaixo
⠀⠀⠀⠀⠀de uma queda) —
⠀⠀⠀⠀⠀ele vai cair
⠀⠀⠀⠀⠀ele tem de cair
⠀⠀⠀⠀⠀e ser esquecido o mais rápido possível
⠀⠀⠀⠀⠀nos contaminou fazendo-nos
⠀⠀⠀⠀⠀sentir nojo quase todos os dias
⠀⠀⠀⠀⠀corrompeu a tudo ⠀o mentiroso
….
depois nos assentamos
num banco extenso
e vemos escorrer
do teto da noite
plasma de sangue sobre um pergaminho
§ fim das histórias contadas para divertir
⠀⠀⠀⠀⠀gesto pendular
⠀⠀⠀⠀⠀nas mãos de argila
⠀⠀⠀⠀⠀surdas em sua lida
⠀⠀⠀⠀⠀o universal trauma
⠀⠀⠀⠀⠀no colo de cada mortal
⠀⠀⠀⠀⠀você desvia o olhar
⠀⠀⠀⠀⠀mas sente que ele te olha
⠀⠀⠀⠀⠀e hoje não finda o labor /
⠀⠀⠀⠀⠀a serviço de quem?
⠀⠀⠀⠀⠀argiloso tom
⠀⠀⠀⠀⠀do pensamento contra
⠀⠀⠀⠀⠀a feiura dos dias e
⠀⠀⠀⠀⠀a dormência nas mãos
⠀⠀⠀⠀⠀a feitura das coisas
⠀⠀⠀⠀⠀cacos de terracota
⠀⠀⠀⠀⠀o pó entre os cacos
⠀⠀⠀⠀⠀vê? as cigarras
⠀⠀⠀⠀⠀ainda nos salvam das cacofonias
também é teu o espaço
que sobra
entre a escrita finda
e a mão do artífice
um fogo lançado no mundo
não haveria aos que se foram
….
camus sentiu-se febril
ao fim de a peste e chorou/
na escrivaninha um cinzeiro
repleto das bitucas dos dias
em que se tem de pensar
ah esta dor de engendrar flores
de papel jornal
(reprises em nossos olhos)
na vida real a peste não se acaba
melindre
ao pé do precipício
passear com jean genet
pela praça da bastilha
na rua o fogo
passou a poesia
que pena
nos resta a realidade
novamente a réstia/
via nisto um sinal de boa sorte
que é quando um pedaço
de sol afaga o chão
cabeça dependurada no sofá
paz — a bílis negra já passou
a rua em fogo
desejou ir a bitínia
círculo de luz sobre o piso liso
verde-broto na falha do rejunte
dormir um sono de anjo cansado
despreocupado com a lei de murphy
amanha outra vez
as cigarras de argila
depois da revolução
dormir com rivotril
ao pé do travesseiro
transar sono celeste
enquanto somos extintos
lego de peças oníricas
mosto vinho saquê zinebra e absinto
— a normalidade é o pior vício
homero está ali eu vejo
em seus noventa e dois anos
de trampos
desventuras cotidianas
viajava e se esvaía de cansaços
e intrincados são teus projetos
a fio e sangue e teleologias
astrolábio e a fé ao deserto
uma estrela já morta/ a luz ilusória
insiste em cruzar espaço vazio
e há de vir o herói⠀(ô glória!)
escrever assim⠀⠀⠀⠀irmãos
não é altivez nem blague
é paixão confusa
a luz da lâmpada
tão límpida e vivaz
quanto a um sorriso de fótons
leu fausto de goethe
e curou-se no espelho
a turíngia cobiçou ir
chuvas e trovoadas⠀o elã
nunca pôde juntar muito bens
seu sapato adidas tem 5 anos
(aquele mesmo que usou
para chutar seus inimigos imaginários)
além de algumas
tarefas de terra
seu pai deixou o quê?
— objetos da sorte…
palavras de encantamentos
conselhos de bom viver
moedas de botijas encantadas — alguém
sussurrou
o país em frangalhos
o sorriso de falsidade
um pós-tudo entre os cacos
e ele aperreado com a viuvez/
trinta anos de idade & pai de um filho
quase alcançara a sua enteléquia
um esquema duro na favela
os outros — greda pardavasca
e o monstro dentro de casa
enquanto a jovem dorme
…
onde está a equação para
resolvermos os problemas do mundo?
iuri gagarin no espaço de borracha de e.v.a.
⠀⠀⠀⠀⠀ ⠀⠀com estrelas de papel alumínio
…
e sempre em casa⠀vigilante
zelar-se na quarentena
do lar à segurança
e se vier outro meteoro?
⠀⠀no fundo dos olhos a alma canta —
⠀⠀caixa de pregos caixa de votos
— eu sei/ eu sei — disse homero — as muitas
orações saturaram-se com os anos/
retiramos do tempo um caroço
repetição denso duro eterno
onde estará a equação à medida das coisas?
bater na madeira⠀⠀três vezes
no oitavo tomo da sua elegante
enciclopedia della fauna mondana (1788)
giacomo gadinno diz —
l’uomo è l’animale bipede
che ha inventato
la polvere da sparo
e il pane di segale
…
já fazemos planos de viajar
ao exterior
disneylandia por exemplo por favor
comprar tênis de marca
retornar em 2 semanas
distribuir lembrancinhas
aos nossos lobisomens juniores
o sabotador em del castilho
sabe que a palavra
é uma faca de dois gumes
picota a alma alheia
até torna-se alma-de-ninguém (a.d.n.)
uma a.d.n. disse a outra a.d.n.
— … um bocado de provimentos
cevando à boca do santo
uma outra a.d.n. justificou-se
— eu sei eu sei/ um lobo meio que porco
o sabotador abriu a boca
dentes de ouro 24 quilates
sorriso de falso candelabro
<metrossexual que desabre o mar>
as cigarras de argila disseram —
não nos lance praga⠀seu infeliz
assim pela manhã!
fim das histórias contadas para divertir
vi passear nas ruas
multidões estanques
tais aos magros seres
de alberto giacometti
— o que tens a dizer oh transeuntes?
em coro atonal:
— certamente não há nada a ser dito/
⠀ ainda não há novidade
⠀ talvez não houvesse/relaxe
…
⠀a guerra começou?
⠀onde está a guerra?
(fim da histeria seguida de bocejos…)
conspiração de clonazepan na água potável
a revolução é light/contagem regressiva
a guerra é freak
a guerra é fake
os bonecos de jaquet-droz
os bambalalões de pau e ferro
lutam por reconhecimento de direito de sofrer
…
e os profetas se calaram para ouvir
as cigarras de argila cantarem:
“depois de auschwitz não se escreve mais mentiras”
todo mundo se perguntando no
baile de debutantes se pode haver
profetas em língua portuguesa (?)
e um senhor de paletó esquisito
abre um livro de capa escura
e diz — “esta letra abocanha
um pedaço de mundo e lança-o
sobre as vossas mãos e já
não é o mundo/somos nós
lobisomens do vexatório”
e
por causa desta letra (dizemos) enlouquecestes
— padecimento clonazepan 2.0
mas tarde a transubstanciação de deus
em cifrão estará completa/opá!
(comemoração chazinho de boldo
⠀⠀⠀⠀⠀com bolinhos de carimã)
outro moço feito de argila desejou
dar rumo novo à sua vida
quebrar a falsa redoma/
e com a fixidez deste pensamento “mudar”
cochilou no sofá
sonhou — o secreto desejo
de não crer no que só pode ser tido
em meio às virgulas e antes
do um ponto final
atenção à jogada!
um forte chute e a bola corta o campo
⠀
⠀
⠀
um forte chute e a bola corta o campo
de um lado a outro até bater na trave
os lobisomens juniores mordem os lábios
angustiados com o pênalti perdido
agora é a vez dos “senhores da casa”
os veterolicantropos (2 vitórias consecutivas!)
o atacante camisa 10 ajeita a bola
e dá uns passinhos para trás/
corre ziguezagueando e chuta
o goleiro à esquerda e a bola à direita
em uníssono o estádio inteiro vibra
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀gooooooooooool!!!!!!
e o mundo inteiro se redime
⠀
⠀
as cigarras de argila
⠀⠀⠀⠀⠀⠀reverberam
é o tesão dos dias que
se cala para ouvi-las
pés de chão⠀mãos de terra castanha
cara de argila escura sertão
e ainda essa de escrever o que tens?
os enceguecidos
ex-luz — trampo vão — são niilistas de feriadão
e à janelinha azul ave-pilantra
a caneta cheia de heresias
deus tem um grande estômago
e?
saber os teus passos
teus desdobramentos
o desequilíbrio constante
e óbvio tão óbvio que
até traz segurança
⠀⠀⠀ave-pilantra
⠀⠀⠀excomunhão
tudo sob controle à orla do precipício
⠀ ⠀⠀a casa fincada em solo duro
⠀ ⠀o contraforte de granizo
⠀as colunas gargalham da gravidade
⠀não deixarão telhado cair/
proteção meu lactente de argila
dez anos de parcelas de oitocentos reais
dionísio pedreiro⠀lino ajudante
alan carpinteiro⠀arcobotante
sertão de argila negra
⠀ ⠀⠀e quais os outros nomes de gratidão?
tijolos prumo cimento sifão
⠀areia brita madeira vergalhão
⠀ lona manta pino parafuso as mãos
⠀⠀aleluia vieira casa da construção
⠀
malfadado é odisseu
num barco de naufrágios
que ele não pressente
mastro-ocidente é penso
e ele insiste contra o mar
certo de poder burlá-lo
despreza os deuses
e suas indulgências
aqui surtur & loki não sabem perdoar
escudo e lança e a fundação do mundo
a multidão lê a própria nota de rodapé
histórias reprisadas incansavelmente
acho que precisamos de um eno de limão
este lugar onde lanças o teu corpo
que lugar é esse?
universo argiloso dasein
este lugar/ onde te lanças
precipício/ pó/ palavra contumaz/
baldrame onde te deitas
ad vitam aeternam
guima há de vencer a guerra!
⠀
em mil seiscentos e dez
galileu
publicara o “mensageiro
celeste” —
naquele tomo
hão todas as suas
descobertas astronômicas/
seu patrão
o grão-duque cosimo segundo
tem seu nome dado
(no céu distante)
às luas de júpiter
esferas jamais
a olho nu vistas
agora ainda aborrecidas
com nome de batismo
tão horrendo
⠀
⠀
por causa das apologias esféricas
dos bravos militares de veneza
galileu interessou-se pela balística
a ponto de não dormir tranquilo
durante aqueles meses de abril
nas madrugadas de pesadelos
advinham-lhe esferas enormes
metálicas⠀rodopiando num céu
pesado⠀até caírem aos seus pés
como bolas de couro cheias de ar
em minutos⠀seu aposento estava apinhado
tal a um chão de galinheiro cheio de ovos
e em cada uma daquelas bolas havia um código
inscrito que depois a custo galileu transcreveu
ao latim — si vis pacem para bellum
⠀
consta na wikipédia que a.m.b.j.
agnaldo mano broter jr. (1919-1985)
o escritor de “a febre do rato do conceito
nietzschiano do eterno retorno do mesmo”
era um visionário no bom sentido do
termo/ e ainda orador e profeta nas
horas vagas (porque trampava como
ferreiro especializado na construção
de adagas em aço damasco)
nasceu nos primeiros dias da primeira
seca nordestina dos tempos modernos
⠀⠀⠀nos anos oitenta
⠀⠀⠀cerca de 3.5 milhões de
⠀⠀⠀pessoas morreram
⠀⠀⠀a maioria crianças
⠀⠀⠀vítimas da d e s n u t r i ç ã o
o profeta e escritor também morreu
mais ou menos quando
o presidente “pendurou as chuteiras”
para o nordeste
ao dizer —
⠀⠀⠀“só nos resta rezar para chover”
antes de morrer a.m.b.j. proclamou —
⠀⠀⠀“nem o motor à combustão
⠀⠀⠀ou cerveja maltada poderão nos salvar!”
tarde argilosa mestiça
a paisagem nos vê como um
desconhecido vê a um estrangeiro
a mesa dura a ordem a fábrica
pelas ruas os robotas de karel capek
ignoram finalidades
olhos de vidro
párias de mãos de ferro
que fazem as pazes (eternamente)
em apertos de mãos amistosas
(alimárias)
com óleo sintético não estarão
lubrificadas as reentrâncias?
e os pudicos monstrinhos
desconfiaram que o nazareno era comunista
voltaram-se ao improviso
(sem escândalos por favor!)
de inventar pequena saga
um pseudo-semitismo cinza
em que o herói era um pastorssauro
⠀
um homem que sabe a vereda
o outro pedro jonas luiz ajenor
asfalto viela muros lâmpadas
álvaro das estrada bifurcadas
num céu em vertigens longas
estrondos clarões palavras obscuras
um a um a chegar-se em casa
folhas de ipê sobre os sapatos
sem mais balas perdidas pelas ruas
(no meio de cada palavra um fogo
e tem-se uma cor e seu ardor)
o ínterim de paz na terra/ave regina!
o relógio magnético de kircher
marca zero hora/ pazes de fórmica
e madeira compensada
estritas doenças alagoanas
no bar a cerveja de barth recheada
na parede cartaz p & b/ sábado uma gig
formigueiro feliz/arrebatamento
⠀
disseram — enquanto o céu se tece em nuvens
aqui na fábrica fazemos caixas de fósforo
…
depois chegar em casa
e encontrar a musa
afetos com as mãos
o azougue dos lábios
sem palavra ou sinais escritos
nada se inscreverá esta noite
no meio de um abraço
(mesmo a guerra lá fora)
nada compensa aquele trabalho
cujas caixas escapam pelos dedos
fazer valer os gestos
é só um ensaio
no mínimo estar em casa
um risco de fuzil distante
suspenso na cava noturna
após vossa porta o vosso mundo
a gramática predileta
um beijo de língua
⠀
o som das cigarras de argila
essa voz
desnuda do mundo
o manto de acrílico
o modo como preenche
a face da terra
e descansa enfim sobre a grama
é tal ao deitar-se da musa
o verde hiperbólico do dorso
nu de argila⠀numa frase de
fazer faltar o fôlego
⠀
um misticismo semântico invade as íris
e vê o ente conforme o senhor das aspas
a conversão de pedras em duendes sorridentes
duas palavras firmes entre virgulas
e uma longa frase de efeito
a busca amistosa por conversas telepáticas
a velocidade com que se arrastam as coisas
a pressa de ser alguém na vida
josé hernandez lanterna verde/pirilampo
às portas do quase a um passo do
chão/ a fé fermenteia
filosofia tropical — novo templo de isopor
um ébrio eterno cochila na calçada
sísifo olhando-o/e derredor requebram
cinturadas maribondos
⠀
⠀⠀⠀⠀as vozes
⠀⠀⠀⠀o modo irado de bradarem
⠀⠀⠀⠀como se dentassem sobre a carne
⠀⠀⠀⠀vozes como se urros
⠀⠀⠀⠀e a palavra “porra!”
⠀⠀⠀⠀a todo tempo dita
⠀⠀⠀⠀faz vibrar as cortinas do palácio
⠀⠀⠀⠀do planalto
⠀⠀⠀⠀quem sabe talvez sejam
⠀⠀⠀⠀mínimos
⠀⠀⠀⠀os nossos milhares de
⠀⠀⠀⠀ouvidos
⠀⠀⠀⠀uma indiferença
⠀⠀⠀⠀de telhado concavado
⠀⠀⠀⠀de parede cinza lisa aprumadíssima
⠀⠀⠀⠀e há contra todos
⠀⠀⠀⠀aquela coisa que persiste
⠀⠀⠀⠀o mal banal
⠀⠀⠀⠀o numeral
⠀⠀⠀⠀o administrativo
⠀⠀⠀⠀o jogo de bola repleto de bolas
⠀⠀⠀⠀custou-nos muito
⠀⠀⠀⠀aquele discurso que
⠀⠀⠀⠀nos impunha o justo
⠀⠀⠀⠀um sapato apertado
⠀⠀⠀⠀apartamento de lacraias
as primeiras autopsias
foram realizadas há cerca
de 300 anos antes de cristo
por herófilo e erasístrato
autopsia em grego é
mais ou menos αυτοςὄψις
leonardo da vinci dissecou
mais de trinta corpos de gente
de todas as idades tamanhos
cores e gostos
antonio benivieni colheu dados
sistematicamente de autópsias
de gente que não me lembro o nome
em 1761 giovanni morgagni
concluiu o de sedibus et causis
morborum per anatomen indagatis
o livro de cabeceira de
hegel que morreu de cólera
em a lição de anatomia do dr. tulp
de rembrandt⠀ainda hoje sinto
o cheiro da pele branca da tinta a óleo
e dizem que o boneco do fofão tem
um demônio dentro
⠀
⠀imitação-clonazepan 2.0
⠀na capa preta do batman de tim burton
⠀o monstrengo desliza em sapatos duas cores
⠀palhaço graviola gospel noir et blanc
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀(amarelamento d’alma…)
mais chibatadas romanas sobre as costas de
paulo
um berro longo ao microfone
os pulmões hipercontraídos
air bag de intestino grosso
pastor maique taisson na parada
(e o cardume enceguecido e eufórico)
por tanta força no falar
um fio de bosta ensaia escapar
nas seu orifício é comportare de couro firme
de sapato bom/e mais outro
berro longo ao microfone!
alamachéia dasarábias!
a multidão estremece
aproveitar as palavras de sílabas formigantes
… e o acusador diz —
metrossexual que desabre o mar/
autoridade sinecura/ de madeira mdf o cajado
cores pelas ruas
castanho bordô escuro marrom
num fundo verde bandeira
e a ânsia terrosa por ser humano
o silêncio das cigarras de argila
não há festa⠀⠀mas há uma quase-paz
já muito acostumada a se virar
(o resto é que sobra atrás do rabo de um toró)
urbanidade cinza
alma-de-cidade e um contraste
no imo desnudo da ex-caatinga
— esta flora por debaixo do tapete
e quais os tons das tuas roupas
prediletas? argila castanha parda preta
sertão/ calça de chão e
blusa de manga longa (os maribondos
te observam…)
aguardar o evento cósmico
todavia à noite havia
a mesa farta⠀⠀a mesma/
um banquete de consequências
Ilustração de Gretzlak.