Henrique Emanuel de Oliveira nasceu em Feira de Santana na Bahia e mora em São Bernardo do Campo, São Paulo. Jornalista pela Faculdade Cásper Líbero, atualmente cursa Letras com habilitação em italiano na USP. É coautor, junto de Henrique Artuni, do livro “Sedimento do mundo: uma geografia sentimental” sobre Carlos Drummond de Andrade (no prelo). Está no CLIPE-Poesia da Casa das Rosas.
A terra batida
Poema ao pai que regressa
De manhã,
recorto o pão na unha
sobre aquele prato
com salmos esculpidos
em que você costumava,
tão calmo,
descascar as partes iguais
da laranja
E Deus tem dado livramento
Deus tem sido bom, meu pai
Desmiolo o pão na unha
como as marretas abrindo túneis
no pé da serra de minha infância
e lembro do pouco:
a mulher
que perdeu os dentes
numa gravidez sem remédios
foi a mesma mulher que sorriu
quando o filho alcançou o altar
Venho arremedando alegrias
Venho sendo alegre, meu pai
Você me liga
dizendo que a invernada
finalmente chegou
dizendo que a invernada
no tempo certo
é a riqueza dos homens
Na ponta da unha
engulo o último pedaço do pão
e digo que chove pela cidade
De longe, sabemos que não há teto
para nos poupar do encharco vivido
É tempo de se molhar, meu pai
Buraco
O sol deslizava no ar
cobrindo pés bêbados
pelas horas de trabalho
sempre mal cumpridas
aos cigarros, palavras e traumas
o peito queimava laranja-quente
As cartas dançavam na mesa
e a mãe dizia em meio segredo
que ainda esbarrava nos vultos
da mama amputada anos atrás
Suas mãos corriam ao monte
revivendo os amores da vida
na sorte das canastras limpas
Natal
Uma outra Maria
aos assobios da caipora
temia os filhos
empreitados na mata
caçando tatus
Uma outra Maria
por acreditar no tempo redondo
ou nas nuvens grossas
que molham o roçado
se banhava em cacimba
e varria varandas
com vassoura de piaçava
Uma outra Maria
ouvia as vozes dos filhos
cumprindo o caminho
de volta para casa
E soletrava alegrias ao fogo
batendo farinha de mandioca
nos restos da peixada branca
até empapar um cremoso pirão
O ladrilho
Almoço
Mesa posta
Mãos baixas
Longe das ilhas imperiais
ressoa a velha sirene
remissão entre metal e fogo
Ao alcance dos olhos
uma vasilha de fundura longa
faz da milharina amarela
um abafado cuscuz,
umbigo do mundo
Quadro
Na garagem da casa sem número
um velho compõe as formas da rua
enquanto conserta alguns televisores
E tudo se movimenta parado
como coração de sabiá-laranjeira
reclamando as instâncias do vento,
preso nos restos férreos da fábrica
As crianças equilibram mochilas
nas cacundas estreitas e gargalham
Os homens passam ligeiros
tateando regularmente os bolsos
As mulheres deslizam inseticidas
por cada canto um dia esquecido
A parede descascada
pelos gemidos dos famosos
A polícia em perseguição
É o Datena quem martela
aquele Jesus Cristo
suspenso em bronze
Luto
O menino
de pés descalços
e camiseta listrada
fina bichos geográficos
pisando nas folhas
caídas ao chão
Os estalos remontam silêncios na gente
Comment (1)
Seus poemas expressam uma certa maturação de vida, coisa de quem andou muito e não se perdeu, mas aprendeu a narrar o olhar com delicadeza. Enxergar a vida pregressa na escavação do pão!