Luciana Henrique é professora de literatura no IFB, pesquisadora de poesia contemporânea na UnB e mãe da Lia. Arrisca seus poemas no @poesia_sem_chao, com imagens da designer Mari Henrique (@mari_que) e revisão de texto da Anna Raíssa Guedes (@annaraissaguedes). Tem publicações nas revistas Aboio e Mallarmargens.
Suspenso
O instante oco aguarda
arredio no canto da sala.
Abrigo de quem conteve o grito
ou desperdiçou a fala.
O instante tem vista pra dentro,
impõe seu silêncio, sua mandala,
onde já nem homem, nem filhos,
nem Deus poderão tocá-la.
Os pratos continuam na pia,
o café esfria, o caos cala.
Inerte, o instante palpita
na sua densidade rala.
Muito breve se dissipa
o instante no canto da sala.
Não estanca o sofrimento,
mas a dor, a torna mais clara.
Ventre
Carrego todos os dentes,
apêndice, vesícula, rins
e um aparato eloquente,
aparência de gente,
os meios, os fins.
Mas não há tendão
que não arrebente
na insuficiência de mim.
(Minutos diários no espelho:
— Está bem assim, está bem assim).
Esta mãe, esta avó
que carrego
— corpo fátuo no meu halo,
artérias pros meus coágulos —
gritam toda vez que me calo
no atrito das quinas que esbarro.
Onde me nego.
Onde não caibo.
O muro
em memória de Miguel Otávio Santana da Silva,
morto em 2 de junho de 2020.
O muro inscreve a lei,
ergue a letra ao analfabeto.
O muro veta o olhar,
interdita a passagem,
burocratiza os afetos.
O muro é o que há de abjeto:
seu concreto inerte, seu cheiro de mijo, sua pele cinza.
O muro convida ao saque, ao assalto,
converte conforto em medo.
O muro não guarda o segredo
do ressentimento de classe
que cresce
feito mato.
O muro nomeia a propriedade,
o gado.
O muro resguarda as mínimas diferenças
da fachada, da grama aparada
da cor,
da classe.
O muro não vê que
o menino não é menos que um cão.
O menino não é mais que um não.
O menino suas asas no ar.
Seu corpo no chão.
O muro no caminho dos refugiados,
No horizonte dos expatriados.
O muro não redime os alienados
do hospício,
das igrejas.
Não redime
os mortos dos cemitérios
nem os vivos das casas de detenção.
O muro sintoma, sequela,
sinédoque.
O muro sequestra
nosso pontiagudo desejo de liberdade
sob a derme.
Foto de Luísa Machado.