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Pílula Boom

por Érica Magni
Desenho de Ariyoshi Kondo para ilustrar os poemas de Érica Magni.

Érica Magni é cria da Vila Kennedy, Zona Oeste do Rio, e viveu em Roraima metade da infância. É formada em jornalismo há 16 anos. Morou na Espanha e na Islândia, trabalhando com projetos que unem comunicação, poesia e Direitos Humanos. Acaba de lançar seu segundo livro de poemas Areia na Olhota pela Editora Pedregulho. Em 2022 criou o podcast “Rádio-Carta Mulher”, com dramaturgia da atriz Joice Marino. Em 2021 editou o livro de ilustrações Diário de Área, desenvolvido com indígenas Yanomami, da artista multidisciplinar Vera Ifasey. Participou da coletânea do poeta Paulo Sabino, Poesia para Pandemia, da Editora Autografia, em 2020. Publicou Poérica na Flip 2019, pela Editora Cousa. Vive há três anos em Arraial do Cabo e é tutora e aprendiz de quatro bichos, Fela Kito, o gato, os cães Refresco e Ataliba e a cadela Coração d’Sal.


Tradução pro francês por Sandrine Fernandes.

Pílula Boom

Apenas a prática do olhar poético poderia
salvar nossa pele do ressecamento causado
pela fricção dolorida dos dias iguais.

La pilule qui fait Boom

Seule la pratique du regard poétique
pourrait sauver notre peau du dessèchement
que produit le frottement douloureux des jours identiques.


Olho cego do som

Atrás de meu corpo olhos cegos
no meu copo pedaços do outro
passo do medo batendo dentes
saco a alquimia desses bandos
que gracejam mais um voo raso
olhos cegos, inertes se deslocam
quase posso ouvir a engrenagem.

L’oeil aveugle du son

Dans mon dos des yeux aveugles
dans mon verre les morceaux d’un autre
la peur avance en claquant des dents
je capte l’alchimie de cette clique
qui se rit des discours creux
des yeux aveugles et inertes s’agitent
j’en entends presque la mécanique.


Garotas

Nos estirávamos por debaixo daquele toldo, minhas irmãs e mãe de
contar estrelas.
Todas as noites um novo plano para rasgar uma enorme forma
de bola naquele toldo, de modo que poderíamos finalmente ver
e receber o céu.
De pensar em como abriríamos uma grande festa das frases mais
lindas, com trocadilhos de dar inveja.
Uma noite ensaiamos uma grande escada humana com trapos que
viraram belas cordas entrelaçadas em nossas angústias de ervas
rasteiras.
Não temo o perigo, dizia minha irmã mais nova, rodando os cabelos
pra escalar a corda de trapos.
Era bonito ver a gente, éramos como pequenos esquilos em frenesi.
Todas as noites trocávamos de roupa entre nós, para que o anjo nos
confundisse.

Jeunes Filles

Nous nous allongions sous la bâche, mes sœurs, ma mère et moi pour
compter les étoiles.
Toutes les nuits nous imaginions une nouvelle stratégie pour y faire un trou
assez vaste pour qu’enfin nous puissions voir et recevoir le ciel.
Réfléchir à la façon dont nous ouvririons cette brèche donnait lieu à un
festival de jolies phrases, avec des jeux de mots à vous faire pâlir d’envie.
Une nuit on confectionna une grande échelle humaine avec de vieux draps
que l’on noua en de belles cordes à nos angoisses du ras-des-pâquerettes.
Je n’ai pas peur du danger, disait ma plus jeune sœur en enroulant ses
cheveux pour grimper à cette corde de fortune.
Comme il était beau de nous voir ainsi nous agiter tels de petits écureuils
frénétiques.
Toutes les nuits nous échangions nos habits, pour que l’ange ne puisse pas
savoir qui était qui.


Adolescente

Poderia descer a mesma rua chorando por anos seguidos, sofrendo
todos os tempos.
Poderia aceitar calcinhas, rolas, pedaços faltantes do seu corpo.
Poderia comprar cigarros, aceitar os cigarros, o passo lento, o
afogamento diário da paz.
A angústia da espera, o mundo fantasmagórico da alcova fétida. Sua
pouca paciência, sua moto, sua barba, seu pó, seu ritmo, seu medo.
Sua playlist, seu passado, seu filho, seu pai, sua língua, sua mão de
pouco viço, sua parte podre. Seu batom, seu bate-bate na cabeça, seu
repetitivo modo de ver o mundo. Seu machismo, seu feminismo, sua
vagina eletrônica.
Seu fetichismo, modelitos da china. Sua panela mofada, seu caos
discrepante.
Sua morada num planeta onde nunca estarei.
Poderia qualquer coisa se fosse amor.

Adolescente

Je pourrais descendre la même rue, pleurant des années durant et
affronter tous les temps.
Je pourrais accepter des petites culottes, des petits oiseaux, des
fragments de son corps absents.
Je pourrais acheter des cigarettes, accepter ces cigarettes, le pas lent,
l’étouffement quotidien de la paix.
L’angoisse de l’attente, le monde fantasmagorique de l’alcôve fétide.
Son impatience, sa moto, sa barbe, sa poudre, son rythme, sa peur.
Sa playlist, son passé, son fils, son père, sa langue, sa main peu
vigoureuse, la part de lui odieuse. Son rouge à lèvre, sa façon de se
cogner la tête avec les mains, sa vision répétitive du monde. Son
machisme, son féminisme, son vagin électronique.
Son fétichisme, son goût pour les tenues érotiques bon marché. Ses
casseroles moisies, son chaos cacophonique.
Son adresse sur une planète où je ne poserai jamais les pieds.
Je pourrais tout faire si c’était de l’amour.


Material feito de noite

Com a áspera luz que toca refinando o espaço que dividimos,
invoco minhas aventuras mais absurdas. Ajude-me céu, não com
bênçãos urgentes ou milagres bobos. Mas com doses necessárias
de pequenos doces em gotas, que poderiam chover, estalando nos
telhados de vidro dessa cidade ansiosa de poesia.

Matériel fait de nuit

Par la lumière crue qui touche et sublime l’espace que nous partageons,
j’invoque mes aventures les plus farfelues. Aide-moi Ciel, non par des
bénédictions urgentes ou de vains miracles. Mais par une pluie
bienvenue de petites douceurs, qui tomberait crépitante
sur les toits de verre de cette ville en mal de poésie.


Vespa

Sim vespa, você pode entrar na sala branca e voar em círculos. Está
pensando em manter a roda coordenada, alternando o zumbido e
o bater das asas? Zunindo longe os segredos que te trouxeram até o
momento exato de um encontro comigo. Paredes e luzes brancas
também me atraem. Vespa, venha me ver pra ouvir um conto sobre
quando uma mulher em prantos quis voar de sacanagem. Não tinha
asas como as suas, e mesmo se tivesse, não seriam suficientes para
o tamanho do voo que pensava dar. Vespa, sua certeza de inseto
faz inveja a qualquer exorbitância humana. Quando lá de cima
você me fita, fico petrificada e intacta no tempo embaixo, de olho
na sua desenvoltura, tecendo minha pequenina análise sobre voos e
asas exatas. Quando quiser, passe na minha casa, vamos ser menos
distantes, voe mais perto do meu horizonte.

Guêpe

Oui Guêpe, tu peux entrer dans la pièce blanche et tourner en rond. Réfléchis-tu à maintenir
ton vol bien coordonné, à alterner le bourdonnement et le battement de tes ailes ? Ton
chuchotement lointain emporte avec lui les secrets qui t’ont amenée jusqu’au moment précis de
notre rencontre. Comme toi, les murs et les lumières m’attirent. Guêpe, viens un peu par ici
écouter l’histoire d’une femme en larmes qui voulait voler pour le plaisir. Elle n’avait pas d’ailes
comme les tiennes, et même si elle en avait eues, elles n’auraient pas suffi à la faire voler aussi
loin qu’elle l’aurait voulu. Guêpe, ta certitude d’insecte fait pâlir d’envie toute exubérance
humaine. Quand de là-haut tu me fixes, je suis pétrifiée et intacte en bas, à contempler ta
désinvolture et à élaborer ma petite analyse sur ton vol et l’exactitude de tes ailes. Quand tu
voudras, passe à la maison, nous serons plus proches, tu voleras plus près de mon horizon.


{Tetê Terraço}

era uma mulher,
vivia no alto do direito,
[beijo] no sol quente do meio-dia,
[mão na mão] da lua ardente
contra melancolia,
vendia colheres
de chá, de folhas,
que ela secava,
que ela mesma moía
que dela mesma saía
“Malaquias 3:10”,
Escrevia da bíblia,
em catálogos de revistas
contava com deus
para o que queria
ficou careca cedo.
[coisas do cerebelo]
Desesperada,
em seu maior medo,
de viver sem os cabelos
[bebeu urina em segredo]
não adiantou reza
nem urina
nem bíblia
nem mijo
o bulbo,
the
Tetê Terraço
desconhecia
endereço
a coroa pelada
no alto da cabeça
luzia na cara dela,
toda vez que se via,
careca sofria,
bandida é a vida
de levar
o único chumaço
de mulher que
ela tinha
se eternizou, rainha,
sozinha, pelada
de solidão,
que nem
poeira leve,
pulou do terraço
no dia de
Cosme e Damião

{Tetê Terrasse}

il était une femme,
bien comme il faut,
qui vivait en haut à droite,
[baiser] au soleil chaud de midi,
[main dans la main] avec la lune ardente
contre la mélancolie,
elle vendait
du thé, des feuilles
qu’elle faisait sécher
qu’elle même broyait
qui d’elle-même sortaient
« Malachie 3:10 »,
Ecrivait-elle de la Bible,
sur les pages des magazines
c’est qu’elle comptait sur Dieu
pour obtenir ce qu’elle voulait
elle perdit ses cheveux tôt
[choses du cerveau]
Désespérée,
effrayée à l’idée
de vivre ainsi pelée,
[elle but de l’urine en secret]
mais rien n’y fit
ni urine
ni bible
ni pipi :
les bulbes
de Tetê Terrasse
n’en firent
qu’à leur tête.
la couronne défaite
sur le haut de son crâne
resplendissait sur son visage,
elle souffrait chaque fois
de se voir si chauve,
perfide est la vie
de lui avoir volé
l’unique
atour de femme
qu’elle avait
elle s’éternisa, telle une reine,
seule et nue,
parée de solitude
comme d’une poussière légère.
Elle se jeta de la terrasse,
le jour des Saints
Côme et Damien.


Desenho de Ariyoshi Kondo.

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