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A mãe e o namoradinho de Egon Schiele, por Flávio Adriano Nantes

por Flávio Adriano Nantes
Arte: Self-Portrait, de Egon Schiele.

Flávio Adriano Nantes é professor de literatura e às vezes escreve.


Para o Guim Amorim, com candura

Qualquer dia eu vou gritar o que existe entre nós
(na voz de Leila Maria)

Talvez a materialização mesma dos meus desejos eróticos começou com as aquarelas de Egon Schiele, mais precisamente os nus masculinos; eu deseja aquelas imagens, me deitar sobre elas, sentir a respiração, entrelaçar nossos corpos, justapô-las ao meu, viver de mãos dadas… e nunca mais tomar sorvete de pistache aos sábados, sozinho; e nos domingos, depois do almoço quando o tédio se tornasse insuportável, desenharíamos juntos, com o olhar estrábico, ocupando a mesma mesa.

Eu havia decorado cada sequência de traços daqueles homens do austríaco que se tornaram todos meus; eles foram meu-primeiro-homem-amor. Mas desta história ninguém sabe, ela não encontraria recepção em casa. Não sabia que minha mãe não entenderia que seu único filho, criado com tanta doçura, gostava de meninos e os desejava. Não entendo minha mãe, a estrutura ambivalente dos seus sentimentos: uma mulher que passou a vida inteira cantando uma música que ouvira quando ainda namorava meu pai: meu amor, não pode ser, não podemos mais fingir, até quando vamos ter que esconder nosso amor? eu não posso mais conter a vontade de dizer, não consigo disfarçar meu amor por você, meu bem… na voz de Leila Maria… dizia que a canção não pertencia a ninguém senão a essa mulher.

Minha mãe é uma mulher preta e diz que por ser preta comeu o pão amassado pelo diabo que é branco; conheceu meu pai na época da faculdade, se apaixonaram e ela se ferrou; meu pai era branco, a família não aceitava e fez da vida deles um inferno. Se casaram e antes de eu completar dois anos meu pai morreu; nunca mais tive contato com sua família branca; eles não nos procuravam, minha mãe e eu tampouco.

Na adolescência eu-me-soube-gay, mas descobri também que sempre fui, mas não-sabia-que-era. Meu primeiro namoradinho foi Egon Schiele porque a pintura dele era ele. Se o artista alijou de si todos os tabus para explorar a nudez em suas obras, de minha parte não tenho qualquer problema moral em dizer que o primeiro corpo que explorei sexualmente foi a figura autorretrato em aquarela e carvão: tinha um olhar ladeado, um braço estirado o outro erguido até a mão envolver a cabeça, os pelos das axilas eriçados, baixando os olhos eu deslizava sobre tórax, o abdômen e a barriga afundada pela magreza; sentia no rosto a textura dos mamilos, dos pelos diminutos no peito, do umbigo – o centro da terra do meu desejo, até estacionar meus olhos no membro e no volume arredondado que ficava atrás dele; eram os detalhes da figura, depois do rosto, que mais me detinha… todo aquele conjunto me pertencia, aquele homem era meu e eu era dele.

Eu lia as cores da pele do meu namorado – amarelada, avermelhada, esverdeada, furta-cor… e dava a todas elas um tom em consonância com os meus desejos. O vermelho era a cor que queimava todo meu corpo, acendia em mim o fogo que me embriagava e preparava meu corpo para o futuro-sexo-amor, me fazia desafiar o mundo com nosso amor que não podia ser. O amarelo, o tempo de espera, a maturação das horas, a impossibilidade, o veto à conjugação dos nossos corpos. O verde, diferente do verde-pistache, essa bile entre nós, compunha as tonalidades que traduziam a cólera e a mágoa que sentíamos pela reprovação dos nossos afetos. O furta-cor era minha própria cor, um terror a mais, uma violência antiga que persistia, uma-dor-cor, nula, uma-cor-pedra que esfolava a mim e minha mãe.

Egon estava por todos os lugares, sobretudo dentro de mim: na agenda, na porta do lado de dentro do guarda-roupa; na gaveta eu deixei uma réplica em papel cartão que pedi para imprimir. Menti para minha mãe que era para um trabalho de artes da escola; o artista morava comigo, no meu quarto, na minha gaveta; às vezes ele dormia em cima de mim, no meu peito.

No dia em que contei à minha mãe sobre meu desejo, houve um abalo sísmico em nossa casa. Não conseguia acreditar que a mulher-mãe que fez tudo – ela mesma dizia isso com toda força do seu amor – para que eu fosse feliz, para que eu entendesse que a nossa cor preta era apenas um cor e nada. Essa mesma mãe se recusou a aceitar meus afetos, a permitir que eu lhe apresentasse um namoradinho, a aceitar que fosse a festas com amigos gays… como era possível a mãe-amor atentar contra meus afetos, engaiolá-los, negá-los.

Ela caiu, caímos juntos na mesma armadilha que um dia desautorizou seus afetos preto e branco e agora destruía os meus, parte de mim… será que passava pela cabeça de minha mãe o que é ser impelido, arrastado, obrigado a desejar um corpo? Será que tinha ideia da vida que eu teria? A música cantada por minha mãe que me dizia sua história por intermédio da letra também era minha. Era a história dela que se repetia em mim. O meu amor, como foi o de minha mãe, não pode ser vivenciado. O amor não era para ela. O amor não é para mim. O amor não é para nós. Ela, preta; eu, um-preto-gay. Amores inconvenientes.

_Por que, mamãe?
_Não aceito, não admito, não quero um filho veado. É ridículo dois homens juntos, se beijando, duas bichas andando nas ruas, todo mundo olhando, rindo, xingando. Quer ser chacota para o todo sempre, meu filho, agora e depois? Ou você acha que as bichas velhas são respeitadas? Por que está fazendo isso comigo? Te criei sozinha com tanto amor e afinco, não é justo.

Diante das palavras dolorosas de minha mãe, me tranquei no quarto, quis morrer, dormir para sempre, nunca mais vê-la ou ouvir sua voz. Do dia para a noite, minha mãe se transformou no grande algoz que me assombrava todos os dias. Na solidão e no desamparo das horas, agarrei-me a meu namorado e repetia rancorosamente as palavras de minha mãe. Ele me disse que ela não era uma pessoa ruim, como nós também não éramos.

Dias depois, ela se aproximou de mim e pediu com o olhar doce de sempre para que eu a acompanhasse até o armário. Ela acocorou-se com o peso inteiro da humanidade nos ombros e de uma pilha de livros, agendas antigas, cadernos, ela retirou
um livro e de dentro dele extraiu uma foto. Era ela, meu pai e um bebê.

_Sabe a solidão dos dias que você sempre se queixa? Eu, um dia, quis me levantar do profundo da minha própria solidão; e adivinha? Me levantei, sim, me levantei, mas eu era a mulher mais sozinha entre todas. O meu corpo não pode ser amado, meu filho. Seu pai deve ter sido mesmo um anjo porque foi o único que me amou…
_Mamãe…
_Eu vivi todos esses anos sozinha; no trabalho, no prédio, na rua, nas reuniões de pais e mestres, no clube que você fazia judô. No trabalho, me pediam para servir um café ou limpar alguma coisa, quando não era minha função; no prédio, me perguntavam quem era minha patroa; na escola, quando ia te buscar, eu era reconhecida como a babá de alguma criança. Está é a única foto que tenho da minha família, de você com o seu pai. Não tivemos tempo para nada e o que tivemos foi sem paz porque ninguém nos aceitava e você sabe as razões. Eu sou incapaz de te magoar, ferir o que de mais bonito a vida me deu… e se me comportei de uma maneira dura é porque não vou suportar te ver sofrer, se alguém te machucar, eu também me machucarei, se alguém quebrar o teu coração, será o meu…
_Pois muito bem, mamãe, farei como sempre me ensinou: vai ser um escândalo quando o mundo inteiro conhecer o meu amor. Ela me abraçou e choramos juntos.


Arte: Self-Portrait, de Egon Schiele.

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