Paulo Tassa nasceu em 1985, na cidade de Manhuaçu (Minas Gerais). É doutor em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa (2023) pela Universidade de Coimbra e mestre em Literatura Brasileira e Comparada (2012) pela mesma instituição. Licenciou-se em Letras pela PUC Minas (2010). Em 2018, estreou na poesia com caída (2018, Letramento) e em 2021 lançou o homem à espera de si mesmo (poesia, Mosaico).
I
Tá calor demais aqui! Eu não aguento essa roupa. Dignidade é sair do mundo que nem entrei nele, minha filha. Daqui não quero nada. Isso, podem tirar a minha roupa, rápido, rápido.
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Agora quero ficar só, um pouco e sempre. Não, nem você, minha filha! Quero ficar só eu mesmo. Oh, minha filha, por-fa-vor!!!
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Pela última vez, eu no meu corpo: dedos em pele e osso, veias verdes e muitas, rugas e rusgas nas mãos ainda minhas. É minha a pele e este tempo.
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Este peito flácido me afirma. Gosto da mistura nele de gordura e vinco: vinco, vinco, vinco, vinco, dobras no tempo. Um a um, ossos insinuados, rotas de cálcio antigo. Não consigo me lembrar do rosto da minha mãe. Meus mamilos roxos e secos; seco; seco.
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E esta barriga? Quanto me custou manter essa barriga reta, no zero, e agora aí está ela, zombando das minhas loucuras, mil sorrisos diferentes na gordura de cada estria. Morrer é tão útil.
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No meio das pernas finas e ossudas, ainda guardo um pinto pequeno, que de tão evitado ficou ainda menor: agora ele é uma rosa no final do verão, um beijo enrugado sobre duas bolas de morango, frutas fugitivas, mero adorno.
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Não consigo mover os meus braços. Ainda posso vê-los, isso sim. Lembro que os meus cotovelos estão trincados faz tempo, é verdade, e daqui ainda enxergo o verde cansado e longo das veias, uma pele tão fina que parece propensa ao de repente rasgo.
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O ar, o ar… um sono forte e eu leve, sem ossos, peito, pernas, braços, mãos. Sem cabeça. O último sono.
Morro feito pássaro: voando.
II
Que cansaço! E agora o pai quer tirar a roupa, ficar pelado. Por quê? Que calor foi esse que entrou nele de repente? É julho… Não acredito que ele vai morrer hoje, no aniversário da mãe. Não acredito.
Sim, vamos tirar a roupa dele.
Ah, eu odiava ver o meu pai sem roupa. A primeira vez eu estava na oitava série, a aula acabou mais cedo, eu cheguei em casa e ele saiu do banho sem roupa nem toalha. Vi tudo e nem sei bem o que senti.
Pronto, obrigada! Sim, eu vou ficar um pouco com ele.
Hoje não me importo tanto. Gosto do corpo dele assim vencido, tanta pele enrugada onde eu nem imaginava que podia dar ruga. Sempre que dou banho nele fico impressionada com tanta pele mole, tanta banha. A bunda já não existe: é um vazio feio e flácido. O pinto… ah, não, coitado…
Será que ele tá com febre? Delirando?
Eu não tinha reparado nas mãos dele… estão mais ossudas, mais suplicantes. A velhice aumentou o tamanho dos dedos do pai, coitado. As mãos e os braços atravessados por veias desbotadas. O peito também, tão enrugado e cheio de manchas, pintas, verrugas antigas. No meio dos antebraços dele, uma fenda enorme. É ausência de carne, fraqueza mesmo. Braços e ombros são pele e osso, pele e osso, coitado.
Tem certeza que você quer ficar sozinho? Mas pai…
Tá boooommm…
A cara do pai tá parecendo um chão seco: olhos desorbitados, os lábios chupados pra dentro, baba seca branca nos cantos da boca, a bochecha caída, o rosto trincado. A barriga então, é só carne sem forma. Carne não, gordura já secando. Quem vê não pensa naquele homem completamente viciado em esporte, corpo perfeito. Ele é outro mesmo.
Ah, por que eu fui ver o pinto dele… por quê? Sempre evito ver isso na hora de dar banho, mas hoje… não sei… acabei olhando. Tem muito prepúcio ali, e tudo murchiiiinho, a virilha já escura e misteriosa. Ainda bem que as enfermeiras me ajudam a limpar essa parte, porque…
Alguma notícia do meu pai, doutor?
Ah, não, pai! Logo hoje que é aniversário da minha mãe…
Arte: Head of an Old Man in a Cap, de Rembrandt.