Leonardo Zeine cursa o doutorado em Neurociência da Linguagem no Insituto Max Planck, em Frankfurt. Escreveu e dirigiu em 2022 seu primeiro curta-metragem, o Bye bye Adeus, que será lançado em São Paulo até o final de 2023 e também colaborou com a primeira edição da revista Aboio com o ensaio Ver e falar em Berlim.
1. Atenção
Primeiro capítulo de romance
– A primeira vez que vi Exu Caveira, tinha uma vela acesa entre cada dois dedos de seu pé.
Ouviu as batidas na porta e largou a escova com espuma sobre a barra de sabão e o balde. Enxugou as mãos na própria roupa e deu início ao caminho do corredor escuro em direção à porta de entrada, sem se dar ao esforço de prever quem a chamava. Nem mesmo as duas vozes femininas, já distinguíveis à altura do corredor, lhe despertaram a atenção, que ainda palpitava de corpo quente, os olhos ainda fixos nos pequenos movimentos repetitivos de suas mãos. Teve de refazer palavra por palavra a saudação agourenta para dar-se conta de que, de repente, estranhamente, não estava mais sozinha.
– Agora me diga: como era que a cera não queimava o pé do cavalo? Me diga, Dulcineia! Me diga!
As duas senhoras foram entrando, mantendo uma espécie de conversa privada, marejada no tom, em seus olhares secretamente trocados, miúdos, as palavras pouco importando. Inspecionavam, a passos discretos, a posição dos móveis, que já tantas vezes haviam visto, as poucas fotos na estante (dos parentes de Maria que conheciam, ou viram, ou ouviram falar), também os brinquedos dos meninos, estes com certo ar de desprezo, largados pelo chão.
– Venha, minha filha – disse dona Branca enquanto se sentava no banquinho de madeira. – Traga pra nós um café!
E houve alguma vez um convite? Esquecera-se de algum combinado?
– Venha, minha filha! Há muito do que se falar sobre a vida e aos que pensam, o dobro de tempo para se varrer o chão! – disse Dulcineia, causando risadas debochadas vindas de dona Branca.
Na primeira vez que vi exu Caveira, havia uma vela acesa
entre cada dois dedos de seu pé. De seus dois pés. A seu
lado, sua namorada: a de pele brilhante, ostentando um
lindo brinco de ouro na orelha esquerda e um perfume de
rosas que invadia por inteiro o salão das almas.
As duas senhoras, já sentadas, encaravam Maria e os olhares se cruzavam: de Dulcineia a Maria, de Maria a dona Branca. Sim, minha filha, traga-nos café. Não há nada demais em se visitar sem avisar, não somos madames também. O local a ser posto a bandeja já está definido, não vê?, nós duas de um lado, você, minha querida, do outro: todas as coisas como deveriam estar: em seu mais-perfeito-devido-lugar.
O suor já começava a secar, a temperatura do corpo, sentia, já era mais baixa. Que fosse quinze minutos antes! Quanta coisa se pode fazer em quinze minutos. Maria pousou seus olhinhos sobre as senhoras e com, paciência e lucidez, disse calmamente:
– Vou já preparar um cafezinho para nós. As senhoras fiquem à vontade, viu?, que eu volto já.
Entrando no corredor escuro, Maria começou a conversar com sua mãe, sobre como adoraria contá-la a história das duas senhoras atrevidas, a imaginar como ela própria reagiria. Vencida, deu-se tempo a um cândido sorriso.
Não esperaria compreensão alguma – atenções viradas a outras graças –, mas tinha certeza de que, se viva, sua mãe estamparia seu largo sorriso quando ouvisse os detalhes sobre o par de velhotinhas que mais pareciam atrizes de um teatro de marionetes. E Maria diria “como farfalhavam!, como se mexiam!”, e suas gargalhadas! Jamais entrariam na casa de sua mãe sem avisar, jamais passariam por cima de suas tarefas sob o pretexto de tomar um simples café. Mas, a bem da verdade – atenções voltadas a outras graças –, não há tanto problema em se pausar uma faxina e trocar meia dúzia de palavras.
Maria respondia suas próprias perguntas distraída com a água fervendo. Dulcinéia e Dona Branca, na sala, pareciam elogiar a figura de São Jorge presa há três gerações no batente do corredor. Um quadro de madeira escura, talhado à mão, com tintas envelhecidas em tons de vermelho, preto e verde-musgo. As curvas do santo, mal sabiam as senhoras, haviam sido há muito lidas por Maria, que não via mais motivo para mistério: todos os detalhes participavam com naturalidade de seus sonhos, a pequena luz vermelha que há muito não funcionava também habitava seus pensamentos com extrema fluidez, da mesma maneira que São Jorge vencia todas as vezes o dragão, já inofensivo.
– Caso seja este o motivo da visita – Maria dizia consigo mesma, – já disse muitas vezes que me contento em rezar pelas manhãs, ir à igreja em datas especiais e ao terreiro caso seja chamada.
– Também não obrigo filho nenhum a fazer o que não quer em matéria de religião. Ainda que Antônio, tão novo, espiando o fumo dos cachimbos, se lembra da festa?, as músicas de sereias, o atabaque bem tocada. Demonstra clara inclinação ao trabalho o menino. Que orgulho. Uma leveza tão particular, tão serena. Já vi antes no terreiro, com outros meninos. Uma certeza de que sempre há tempo, de que sempre se pode, de que sempre dá pra melhorar alguma ou outra coisinha. É quase triste não sentir eu mesma tamanha alegria.
– Deve ser medo da morte. Eu tenho. E tenho? Antônio ainda não.
– Responsabilidades! É isso que muita gente não entende. Deve-se dar presentes aos espíritos do mesmo modo que se dá aos vivos: de boa vontade, não por obrigação. E mais. Não serei cavalo de ninguém. Não por despeito, muito pelo contrário: por humildade. Lindo sonho aquele que tive com a cobra-coral, pensei por um segundo, não posso me enganar. Enrolada em meu braço, subindo até os ombros, descendo pelo peito até meu umbigo. Bem aqui.
O aroma do café tomava lentamente a cozinha. Os azulejos exibiam um amarelo entardecido e, lá fora, o azul do céu castigava todos os vivos. No canto, a vassoura continuava apoiada, como lembrete. Logo os meninos estarão de volta, o marido só mais tarde; quanto tempo se passa numa mesma casa, não é mesmo?, quantas irmãs já saíram da cidade e eu aqui. Quantas saíram? Apenas duas, é verdade. O resto tudo aqui em volta. Deixaram o sol, este sol que arde impiedoso para se aprumar num canto com mais sombra, num canto com o chão mais frio, com o tempo mais lento. Talvez Isimara tenha ido buscar isto, afinal: a luz amena, o piso mais frio, a sombra mais fresca: sob a proteção dos mesmos guias, mas num tempo devagar, com o Sol lá atrás.
– Enfim, minha filha!
Dona Branca e Dulcineia se ajeitavam enquanto Maria se curvava à mesa de centro. Davam espaço a uma pequena garrafa de alumínio e três xícaras pequeninas.
– Disseram por aí, vamos, minha filha, sente-se, vamos!, sente-se! – apressou-se dona Branca, – disseram por aí, ouça bem, minha querida, que a vida não é nada além de cansaço e descanso, cansaço e descanso. O que acha? Diga o que acha, minha filha, mas pense antes!, de suma importância pensar antes.
– Eu mesma, se me permite – prosseguiu dona Branca – acho que descanso e mudança. As mudanças acontecem, não é minha filha?
– Ô se acontecem – completou Dulcinéia.
– E acontecem de maneira tão lenta, tão miudinha que, no fim do ano, das décadas, veja só a nossa idade, mal percebemos o que mudou.
Era como se a presença de Maria não fosse necessária.
– Você percebe como as coisas têm se tornado outras? Já passa da metade do século, isto deve dizer alguma coisa, não é mesmo? – As duas senhoras sorriam intimamente. – Deve haver algo de divino com os números, disso tenho certeza, e, se não houver, o homem fará com que haja. Um, dois, três… e mil novecentos e lá vai bordoada – e riam! – Veja só a quantidade de gente se amontoando por essas terras. Há pouco tempo matávamos porcos no quintal! Porcos no quintal, minha filha! Veja a ferrovia!, nos cruzando ao meio. Agora os porcos estão em lugares, nós é que vamos até eles.
Maria evitava olhá-las diretamente. Sua atenção passava com facilidade das senhoras para o ritual de xícaras, da conversa para a canção das colheres e do açúcar.
Por uma questão de educação, ouvia o que diziam, mas com o rosto virado para a janela, como que procurando o sol, de maneira solene, como se dissesse às duas que pensava com profundidade sobre o que elas lhe diziam.
– E de nada!
– Como nada, Dulcinéia?
– De nada vale a nossa preocupação! – E como riam!
– Bonito, hã?, que tal, Maria? – disse Dona Branca. – Como é mesmo, Dulcinéia? De nada vale a sua preocupação!
– Veja, minha filha – Maria voltou a olhar para Dulcinéia, – é como aquela história aqui da rua, com os dois irmãos. Já ouvimos um milhão de vezes! Voltaram os gêmeos da guerra: um surdo, o outro mudo. E assim vamos caminhando. Tudo muito curioso!
– Tudo muito curioso, bastante difícil até, minha filha. Tudo muito complicado. É só dar aos olhos um pouco mais de atenção, – a palavra fez vibrar o corpo de Maria por inteiro, – dar aos olhos um pouco mais de sutileza, – e voltou a respirar com calma, – Pode ser que aconteça, veja bem, de alguém se perder no mistério. Sem dúvida. Veja Almir! Na rua, chamam ele de Pinel, que falta de criatividade… francamente. Mas infelizmente, minha filha, você vai lá dizer que estão errados? Nem eu! São meninos os que não podem fazer…
Maria perdia-se em pensamentos. Via as duas senhoras, sabia seus nomes, reconhecia os rostos, mas não conseguia deixar de ver, também, suas próprias mãos, apoiadas sobre as coxas.
Não deixava de manter sob um escrutínio doloroso a ponta de seu nariz, que queimava-lhe metade da visão as cores que via. Os gestos de Dulcinéia, que eram como frases, que lhe entravam no pensamento traço por traço, como se pudessem ser dissecados em coisas menores. A bainha puída do vestido de Branca e seu pensamento, de repente, tragado por aquilo que, segundos antes, nem mesmo existia. Como são maravilhosos estes segundos que passam devagar, disse Maria a si mesma. O vestido, de algodão velho, estampado com pequenas flores azuis, rasgos que se movimentam em levas, com o vento. Maria tocava com seu dedo indicador o centro de seu joelho marcando um tempo que só pertencia a ela mesma, viu as vezes que dona Branca piscava seus olhos. O sol que já era de amainar, o fim de tarde que…
– E como vão os meninos, Maria?
Muito difícil voltar de seu tempo retraído, dos traços dos olhos, do tecido que já voltou a ser apenas o vestido de dona Branca. Disse que Antônio ía bem, que Estér vinha tendo problemas de asma, que Alfredo, o mais novo, gosta mesmo é de futebol. As duas meninas, dois mulherões e a mais velha vende frutas na cidade.
– Que primor de família! Mas que alegria uma casa como essa! Viva! Viva! Viva!
Sentiu os pelos do braço arrepiarem, como um frio que lhe subia do cóccix ao pescoço. Não gostou de ter dito os nomes de seus filhos um a um, em sequência, como se prestasse contas. Gostou menos ainda de não saber onde estava Alfredo.
– O que você tem de sempre se lembrar, minha querida, é que devemos estar atentas.
– Atentas! – disse Dona Branca.
– A tudo que há, às mudanças, ao cansaço, ao trabalho e ao descanso! Não podemos deixar de cumprir nossas obrigações. É de suma importância! Suma importância!
Maria, sem saber por quê, se lembrou da repetida cena quando, pequena, foi deixada aos cuidados de dona Santa, a simpática senhora da rua que cuidava das crianças enquanto as mães trabalhavam. Os sonhos que teve com a cena, rememorava enquanto Dulcineia e dona Branca continuavam o falatório, tornaram-se com o tempo mais e mais macabras: às vezes, estava com as mãos amarradas, em outras, vendada, na última, a tesoura tinha não duas mas sete lâminas, fazendo com que não conseguisse encontrar as linhas finas do barbante. Mas em todas, e é aí onde está a memória, assim pelo menos lembrava Maria, repetia o movimento com as mãos inúmeras vezes, trocava a tesoura da mão direita para a esquerda, cada vez mais aflita, até que gritasse para que sua mãe voltasse e cortasse o barbante, para que pudesse continuar o seu desenho, o dos cabelos de uma menina, ou da crina de um lindo alazão e então acordava.
– Vamos embora – abruptas, levantaram de suas cadeiras.
– Vamos nós duas para o olho da rua, isso sim! – debochou dona Branca. – Mas vejam… – interrompeu Maria.
Afligiram-se e logo se sentaram. Puseram as mãozinhas sobre os joelhos, ansiosas, e pela primeira vez desde que entraram pela porta deram-se a ouvir Maria, dando a ela o tempo necessário para que formulasse sua pergunta. Passados alguns momentos de silêncio angustiado, Maria tomou sua coragem.
– E a mudança… ela é pra bom?
As duas se comiseraram finalmente.
– Oh, minha filha… – começou dona Branca, – tantos outros como este momento!, deste momento em que vivemos. Tantas Marias também! tantas Marias que uma vez habitaram este pobre pedaço de terra carioca. O tempo não prende, minha filha. Basta jogar fora a dor.
O tempo não prende. Todas as coisas, a cada segundo:
como deveriam estar. Basta jogar fora a dor, a
superstição.
Maria consentiu, aliviada, como se tivesse, sinceramente, recebido uma resposta para a pergunta que fizera. Levantou-se e indicou, delicada, a porta às duas senhoras, que voltaram imediatas à conversinha miúda.
– Lembre-se de tudo, minha querida – disse dona Branca, já do lado de fora – Não há nada no mundo que não seja de suma importância.
– Nada, minha filha. Tudo o que importa, veja bem, são todos os detalhes! – E gargalharam barulhentas, atraindo olhares dos que subiam a longa ladeira em que Maria morava.
– Que Deus guarde aqueles que admiram a sua grande obra!
– Que o tempo cure o futuro antes que morra de vez o presente! De pé, apoiada ao batente, deixou as vozes sumirem. O estalo agudo dos chinelos arrefecia, aos poucos dando lugar a um silêncio totalizante, mais do que um silêncio: uma falta, uma enorme pausa.
De olhos distantes, não havia mais o que se lembrar do café, da faxina interrompida. O sol era de um amarelo cortante, áspero.
O turvo da visão vinha do asfalto quente, das telhas de metal, da pele do pescoço. Longe, se via uma pipa, perdida, que voava no céu sem a mais nada estar ligada.
Arte: Duas mulheres bebendo café, de Édouard Vuillard.