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Cincômodos, por Rafael Baldam

por Rafael Baldam
Arte: Interior of a House de Eliphalet Frazer Andrews.

Rafael Baldam, 32 anos, é arquiteto e urbanista pela Unicamp e mestre em arquitetura e urbanismo pelo IAU USP; trabalha com design gráfico; criador do coletivo Rasante, que pesquisa e publica trabalhos sobre as relações entre espaço urbano, arte e cultura. Autor de livros de poesia (Mapas Secos ao Sol, 2019, Editora Patua; Submersa, 2021, Editora Penalux; Vazio Escorre, 2022, Independente) e quadrinhos (_quieto, 2018, Independente; Traduções, 2020, Independente).


/ soleira

Iria se mudar da casa dos pais, onde cresceu. Enquanto os laços familiares poderiam se esticar até a nova morada, temia que aqueles cômodos se dissolvessem na memória. Tinham uma previsibilidade calorosa. Ao acordar no meio da noite, por exemplo, não precisava acender as luzes para desviar da mobília e ao estender o braço sempre encontrava um apoio. A casa era uma velha amiga.

Ao fazer as malas encontrou uma fita métrica. Levaria consigo os momentos ali vividos, mas sua preocupação era com o espaço físico, fincado no chão, impossível de carregar. A fita media cinco metros. Esticou-a pelo quarto, conseguiu suas dimensões, desenhou-o numa grande folha de papel estendida no assoalho. Olhou aquele desenho por um instante e entrou nele. Para levar aquela casa dentro de si deveria conhecer cada centímetro, cada espacinho, cada detalhe, aresta, fresta, degrau. A fita métrica revelava histórias em cada cômodo, como um buraco na parede que lembrava um quadro já ausente, ou um vidro trincado na janela dizendo sobre um descuido. Medir a casa era como medir sua duração.

Passados os traços para o papel, dobrou-o cuidadosamente. Nas suas mãos levava a casa toda; dentro de si, aquilo de que era feita.

/ névoa

Em uma cidade desconhecida, tem que ir do lugar em que está até um ponto destino. Sempre a pé, corre o caminho improvisando pois reconhece o local de chegada mas não o trajeto. Um sonho recorrente. Durante o sono, cria e percorre cidades sem forma.

Em seus percursos oníricos, sempre se depara com um trecho interditado: um muro, um buraco, uma escuridão, um nada, um esquecimento. Na impossibilidade de seguir pela via planejada, faz uma curva e entra em qualquer porta. Seu corpo acende por dentro pelo suspense de estar sob um olhar-vigia: está dentro da casa de alguém. Sem saber a disposição dos cômodos, quantos ou quem são os moradores, se esgueira pelas paredes, ouve vozes em outros quartos, vê sombras pelo portal, se esconde, corre. Por um triz oculta sua imagem, sai pelo quintal, vence o muro.

A urgência de atravessar aquela casa desconhecida e vencer as sentinelas, adivinhando as portas a abrir e os corredores a vencer, dá uma sensação de poder, como se tivesse decifrado aquela arquitetura-enigma. A casa continuaria imutável, mas havia sido atravessada por um sonho e isso muda tudo.

Ao despertar, refaz a trilha na memória e no papel. Sob sua cama, um caderno-cidade guarda todas as casas que visitou nos sonhos.

/ planta-baixa

Era uma visita. Enquanto me mostra sua casa, reparo que cada cômodo abriga pelo menos uma planta. No quintal dos fundos acontece uma pequena floresta. Folhas de todo tamanho e desenho, verdes e sabores, flores, a terra fértil e as coisas nascendo do chão. Ajudo a regar os canteiros tomados por vegetação. A água escorrendo pelas folhas espalmadas, encharcando a terra: uma promessa de que não se perderia pelos caminhos das raízes bifurcadas.

Mais tarde saímos para um parque, onde o vento balança as árvores fazendo soar um rio inexistente. Vimos parte desse espaço livre natural sendo terraplanado para ser um loteamento. O leito das ruas já demarcado no solo rachado, esta paisagem laranja; estamos num tipo de avesso da terra. Caminhamos. Um barulho e meu olhar se ergue para as nuvens, que começam a se juntar e fechar seus tons. Há fumaça no céu. Ex-árvores do parque, em pedaços descartados na beira do proto-condomínio, estão sob o fogo.

De volta à casa, sentamos à mesa para um chá da hortaliça colhida pela manhã. Quando a água ferve sobre o fogão, ouvimos as primeiras gotas de chuva sobre as plantas do quintal.

/ objetos

O espelho me informa com quem me pareço. Ele me desenha ao mesmo tempo que eu, por isso não consigo me ver de olhos fechados. O único objeto que me diz sobre minha máscara é o espelho enquanto todos os outros se calam. Assim que deixo o cômodo esqueço minha imagem lá. Para lembrar-me dela, só posso imaginar o espelho. Parte de mim, o impossível de ver a si próprio diretamente.

/ obra

Em visita à sua antiga casa, ia atrás de uma pergunta, queria algum tipo de confirmação. Abriu uma larga gaveta no armário da sala. Afastou as quinquilharias acumuladas até encontrar um álbum de lembranças. Em uma das fotografias, sorri sobre um monte de areia, ao fundo, paredes sem reboco e madeiras expostas. Era criança. Lembra que crescia pela casa em reforma. Areia, tijolos, ferramentas pesadas, o cheiro do cimento molhado, os sons de marteladas, andaimes construíram sua infância. Sempre morou nesta mesma casa. Uma casa que, apesar de ser sempre a mesma, estava sempre em transformação. Novos cômodos, novas cores, espaços eram criados, ambientes se ampliavam, trocavam de função, trocavam de lugar. A casa, apesar do endereço permanente, tinha sido várias; por mais sólida que fosse a construção, transformava-se, inventava-se e ainda continuava sendo ela própria. Entre a criança brincando no monte de areia e o adulto que segura o álbum de fotografias, há uma travessia: percorrer na infância a casa em metamorfose, chegar à adultez como obra inacabada.


Arte: Interior of a House de Eliphalet Frazer Andrews.

Comment (2)

  • Muito bom Rafa!
    Adorei os textos, em especial, “soleira” e “névoa”. Me fez voltar aos tempos de faculdade…sobre o processo de mudanças (internas e externas), sobre ser casa e morada.
    Parabéns portanto sensibilidade e humanismo ao escrever.

  • Muito bom Rafa!
    Adorei os textos, em especial, “soleira” e “névoa”. Me fez voltar aos tempos de faculdade…sobre o processo de mudanças (internas e externas), sobre ser casa e morada.
    Parabéns por toda sensibilidade e humanismo ao escrever.

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