Ana Clara Marques, nascida em 15 de abril, odeia números ímpares e mora em São Paulo. As palavras sempre foram, antes de qualquer coisa, uma maneira de guardar os fenômenos da vida e sua memória, coisa que mais teme perder.
Manuel de Almeida Melo Freire Junior se jogou da proa do navio que o levava para a Argentina e seu corpo nunca foi encontrado. Lembramos de sua história porque a irmã Sebastiana, única sobrevivente da família após sua morte, é uma referência quando falamos de luta antimanicomial no Brasil. Diagnosticada com esquizofrenia, herdeira com farto patrimônio, foi tratada em casa com cuidadores particulares até o fim de sua vida.
Assim como não conhecemos a maior parte do universo que habitamos, tampouco conhecemos o mar abaixo de nós. Existem tantos organismos misteriosos, todos provavelmente muito feios. E Manuel conheceu todos eles, há tanto tempo submerso como está.
No ano de 2020 uma criança que participou da atividade na Casa de Dona Yayá desenhou esse evento da melhor maneira que se possa imaginar. Pense que não há animais feios, como pensam todas as crianças. E pense que existem sereias guardando aqueles que se jogam em direção ao mar e nunca mais retornam — ao menos, não em uma mesma vida. Pois pense também que há vida além da que temos agora.
A sutileza do azul do céu e do mar, diferenciados por um tom mais escuro e mais claro, respectivamente, trouxeram um fato particular. Nunca consegui falar sobre a morte. Embora ela não me assuste, sempre a tratei com muita apatia. Certamente, algumas pessoas morreram ao longo de minha vida, como Wellington, amigo da família e de infância do meu pai. Ainda hoje sinto que ele vai entrar em minha casa e me dar algum doce, como faria se ainda estivesse por aqui. Às vezes, quando lembro, ainda é surreal. Tenho nítida a lembrança de estar andando na beira da estrada após a aula, contando para um amigo sobre sua morte, como um acontecimento qualquer.
Foi assim também com Solange, outra amiga da família. Desde criança, me levava em uma van junto com seu marido para a praia. Minha tia e ela adoravam colocar vestidos e roupas de praia bonitas em mim. Ela, no entanto, passou por um longo processo, o que me preparou e até me faz perceber como eu já esperava pelo que aconteceu — quando aconteceu.
Questionei, repentinamente: o que faria se tivesse que lidar hoje com a morte? E com isso me veio à mente todas as formas que achei para entender o luto, seja ele de pessoas que morreram em definitivo ou em um espaço simbólico da memória. Quando criança, minha avó morreu por causa desconhecida — possivelmente um tumor. Primeiro, senti um remorso terrível por todos os beijos molhados que havia limpado do rosto. Depois, não entendi. Durante o funeral, todos ficaram em uma sala, mas não consegui. Me senti sufocada. Ao invés disso, fui para o jardim, e passeando entre os túmulos, recolhi as flores mais bonitas que encontrei pelo chão. A intenção era fazer um maço com todas as flores e galhos pequenos que achasse para colocar em sua lápide.
E penso que a morte se pareça muito com isso, um misto de sereias e flores bonitas. Não desconsiderando todas as situações violentas pelas quais passam nossa classe. Sublime como uma sinfonia, ela não exclui a cólera. Porque, em última instância, a morte é algo para se ter raiva. Para gritar com todos que riem enquanto cavamos covas cada vez mais fundas, na tentativa de fazer caber todos os corpos no solo.
Mas a lembrança, material divino preso em nossas mãos, merece ser agraciada.
Foto de Anna Carolina Rizzon.