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Lambe, lambe!

por Sandra Modesto
Desenho de Ariyoshi Kondo ilustra o conto de Sandra Modesto.

Sandra Modesto é mineira de Ituiutaba. Já publicou Acenda a luz (Kazuá, 2015), Tudo em mim é prosa e rima (Autografia, 2019), Era sábado (Kotter Editorial, 2022) e Sonhos e perdas & outros contos (Patuá, 2023).

Sandra Modesto é mineira de Ituiutaba. Já publicou Acenda a luz (Kazuá, 2015), Tudo em mim é prosa e rima (Autografia, 2019), Era sábado (Kotter Editorial, 2022) e Sonhos e perdas & outros contos (Patuá, 2023).


Depois de lamber teus pés, de lamber tuas coxas, de lamber teu ventre, de lamber teu sexo, lambi o que eu mais queria.

Lambi tua alma.

Era assim que eu imaginava ser lambida, ninguém sabia disso. Eu tinha apenas treze anos de idade, me via no espelho da cômoda com o toucador, rebocando a sensação imersa ao espaço dividido por tantas meninas. Cinco meninas com nomes iniciados com S. Para facilitar, creio eu.

 Valentina era um nome que eu gostava. No ritmo morno, às vezes valente.

Eu me lembro do dia recriando o sol, da festa dentro de mim. Uma febre por descobertas, as fases da lua sumindo. Infância se desmanchando. Ternura.

Minha mãe dizia que eu ficava trancada no quarto e que fazia mal.

Mal sabia ela, bem, mal eu sabia.

O tempo foi passando e o lambe-lambe era uma diversão moderna naqueles anos dos fotógrafos que capturavam a imagem – transferia para um papel. Apenas um lado da lâmina era revestido pela emulsão sensível à luz, e essa camada era invisível. Lambendo, o fotógrafo sentia o lado. E pronto. Lá estavam os registros. A partir daí gavetas cheias de fotos emolduravam os momentos saudosos das pessoas nas tardes de um passeio programado. Normalmente aos domingos ou dias inúteis.

Filha e neta de evangélicos tive que frequentar cultos na igreja. Ainda visito alguns flashes pregados na memória…

O pastor falava muito alto, as orações me assustavam e minha avó Iracema me puxava ao caminho do senhor, eu só tinha quatro anos, uma chupeta pendurada no pescoço porque eu não mamei no peito. Nos anos sessenta a descoberta da mamadeira marcou certa ou incerta liberação da ausência do leite materno.

Com pouco mais de quarenta anos, vó Iracema morreu. Eu ainda tinha quatro anos, o tempo foi roendo as nossas idas aos cultos, o curto período vivido entre a primeira neta e a vó com nome do livro de José de Alencar.

Vó Iracema tinha os traços puxando para os de uma indígena, passava e lavava roupas para os moços que trabalhavam vestidos de camisas e calças sociais, garantindo assim o dinheiro dela.

E eu perdi minha avó.

Mas uma frase não me saiu nunca das linhas do tempo:

“Nunca deixam minha neta chorar, dos olhos dela não pode sair uma lágrima sequer.”

Eu chorei muito pelos cantos da infância a fora em cenas com poucos ou muitos espectadores.

Tenho várias espalhadas dentro de mim. Às vezes enquanto a casa dormia, eu corria até a janela, o dia chegando robusto, o tempo comendo tudo que era possível para o dia desvirginar o céu. Contava sorrateiramente sonhando acordada com um amanhecer ligeiro feito gatos pulando nas almofadas, arranhando meus cabelos, mas nunca tivemos gatos. Vento atravessando a janela, meninas dividindo beliches e sol sem neblinas anunciava mais histórias. Inventava jeitos e nem sempre soube o que era sujeito indeterminado.

Eu fugia pela rua. Sempre com o céu em cores. Corria como uma criança que ao ver o colo da mãe, pede carinho e proteção. No início, o espanto, uma cara estranha com leveza, asas de borboletas machucadas pedindo alento. Mas nada adiantou a fuga. Eu olhei meus pelos pubianos. o apalpar seguia lambendo os dedos e tocando a vulva. Desenfreadamente. Toda menina fazia isso. Nos momentos de chuva densa combinada com o perfume barato da farmácia cheia de frascos de lavanda verde. E as caixas do meu gardenal. Todas as noites eu tomava um comprimido e o sono me derrubava sem que eu pedisse. Lembro-me do meu pai viajando comigo até Uberaba, o ônibus confortável, pela janela aberta e a estrada. Como era linda a estrada sumindo pelos meus olhos, numa única direção. A gente viajava sempre seguros do amor de pai e filha. Minha mãe nunca me levou ao neurologista porque cuidava da casa, cuidava das filhas mais novas. Minha mãe dizia sempre à medida que eu virando adulta. “Filha, você tem que estudar para trabalhar e não depender do dinheiro de homem”. De alguma forma, do jeito dela era uma feminista.

Era costume lá na minha casa, meu pai presentear as filhas com anel ou cordão de ouro. Ganhei minha corrente delicada com um pingente. Era uma carruagem, e meu nome gravado. Minha amigada da escola pediu para experimentar e não devolveu. Era a Geisa. Uma menina muito bonita. Eu nem liguei muito por ficar sem minha correntinha porque a Geisa tinha os seios perfeitos. Eram os anos setenta, e a rebeldia era trocar o recreio pela sala de aula, e as meninas levantarem a blusa e mostrar os peitos. Os da Geisa eu gostava… Porque sim. A aula terminava. O ano escolar findava sempre com a brincadeira do amigo secreto. Uma vez, no quarto ano primário na revelação de quem era a amiga ou o amigo de quem, ganhei um batom vermelho. Desse dia em diante, a cor de carmim me persegue parecendo um carma. Sou apaixonada em batom. O ano escolar terminava com a entrega dos boletins. Era um temor. Que alívio ler: Aprovada. E depois as compras reinando o reinício das aulas na porta da livraria ABC. E os ânimos espantavam medos dos novos professores aguçando qualquer coisa chamando curiosidade.

A festa do material escolar com lápis de cor, minha irmã exigindo menos bagunça ao redor da mesa forrada com plástico.  O forrobodó (pão doce) servido de manhã abastecendo a fome rumo à escola, o cheiro da canela pelo chá espalhado. Com minha mãe servindo a gente e meu pai olhando de soslaio. Tudo era inteiro de amor. Tudo. Lambrecando o corpo com Minâncora, Diadermina ou Nívea em frascos de latinhas, um prenúncio de coxas grossas já se destacava no meu adolescer. Avistava uma esperança pousando atrevida no canto da janela e falava sozinha por dentro – “O Tempo voa e há luta para gastar”.

Na vida de uma mulher há perdas. Linhas vazias, puxados caminhos. Nem sempre flores, alguns devaneios e absurdos contextos. Os anos sessenta, setenta, oitenta, noventa, foram me ensinando a ser uma “menina” com os olhos marejados pelas cenas perdidas.

 Eu sei que nem sabia meu lugar. Consegui umas vindas e resistindo ao século 21 o mais doloroso e ao mesmo tempo divertido, permitindo-me a algumas interrogações. De perguntas em perguntas tive que lambuzar respostas. Por quanto tempo ofuscando, por quantas noites mal digeridas, por tantos e tantos sorrisos falsos. Procurava nas entrelinhas o eu que já não existia. Pensando que é fácil suportar do lambe-lambe aos panos em planos ocultos e difusos?   

De repente resolvi renomear os escritos cuspidos em desafios. Até decidir despir fantasmas da memória. Sim, contou outra história.


A cidade amanhecia correndo, as pessoas caminhando com cachorros, o pronto-socorro lotado, eventos publicados na internet, um bando de gente online. E agora? Dar alma ao capeta ou enfrentar tanta merda? Bom, podia não ser tão difícil uma lambida por vez. Por vezes tentei chamar minha avó, por vezes cansei de ser só, só mais uma embaraçada. As notícias, os rumores, os horrores, e o café da manhã, preto puro e forte. Amargurado com tanta incompreensão. Coração movido a bateria, carregador de celular destemendo sua relevância.

O mundo pedia sossego. Mas a vida pedia coragem. Deixa a coragem chamar Valentina? Valentina imaginando ser a atriz dos cartazes espalhados nas revistas. Incontroláveis desejos invisíveis. Valentina tornou- se dona de um livro imaginário, talvez um sonho, talvez. Vivacidade em não controlar os instintos.

Teve um chefe que trancou a porta e queria um beijo de língua.

Valentina fechou a boca, correu e abriu a porta, fez o patrão entender o devido lugar. O nome disso é assédio, quase um estupro, soube disso bem depois. Há sempre um depois no meio do Brasil. Ainda há memórias daquela tarde, da porta, da boca aberta, do movimento do beijo estúpido, da força estatelada rompendo a chave, barulhinho de um capítulo beirando um final. Quem sabe uma guerra íntima… Valentina ainda ri pelos cantos e descobre uma sensação pulando a dor. Um universo estranho que durou apenas cinco minutos.

Silêncio, uma vitória qualquer. O desafiar na vida estarrecida numa cidade da ponta de um triângulo mineiro. Fuga para não sangrar. Olhar a história e sofrer menos. Aplausos rabiscando a folha caindo seca. Aquele chefe com bafo de cigarro ficou lá… Valentina percebeu.

Nunca largar macho foi tão gostoso nesse episódio miserável antes dos anos dois mil.

Mas se quisesse contar mais sobre isso poderia. Preferiu o silêncio comendo respostas. Na noite fria sugando a língua pela primeira vez.


Desenho de Ariyoshi Kondo.

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