Tatiana Lazzarotto nasceu entre o Noroeste de Santa Catarina e o Sudoeste do Paraná, em 1985. Desembarcou em São Paulo em 2011, onde vive até hoje. Graduou-se em jornalismo e em letras-português na Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro-PR). Atualmente, é mestranda em estudos culturais pela Universidade de São Paulo (USP). É uma das organizadoras de Cartas de uma pandemia: Testemunhos de um ano de quarentena (Claraboia, 2021). Em 2020, foi contemplada pelo ProAC de obras de ficção, com o projeto que deu origem ao romance Quando as árvores morrem, publicado pela Claraboia, seu primeiro voo solo na literatura.
Aos poucos, o espetáculo da morte se despede de sua roupa de gala e de seus cílios postiços e se transforma em uma visitante folgada, dessas que abrem a geladeira e nos perguntam pelo café da tarde. Aqueles que conhecemos em trajes de dormir sempre nos apresentam sua pior faceta. É no dia seguinte à partida do meu pai que somos encerrados na cápsula sombria da dúvida. E se? E se ele tivesse ido ao médico antes… Cirúrgica, a incerteza afunda a pele. E se tivéssemos feito algum exame que visse que algo não ia bem… Revira nossos órgãos, à procura de mais sofrimento. E se soubéssemos que aquele era o último dia… Apresenta suplícios individuais. E se eu tivesse aberto a farmácia que minha mãe sempre quis? Sucumbimos ao golpe. E se tivéssemos tido a chance de nos despedir?
Cada dia do além-morte esconde uma tarefa. Hoje não é um dia para a ação, somente para se esconder, tomando a forma da casa como jazigo. O telefone, alheio à etiqueta do luto, não para de tocar. Dezembro é o mês em que meu pai realizava eventos em cidades, às vezes mais de um por dia. Contratado por prefeituras e comércios, ele fazia suas aparições, distribuía presentes, respondia a cartas. Todos os contratantes nos telefonam, metade querendo desejar os pêsames, a outra metade querendo entender se há alguma espécie de substituição.
Não tem.
Atendo ao celular dele diversas vezes e não consigo anunciar que estou ali, interrompendo os toques. Do outro lado da linha a voz hesita, é difícil telefonar a um morto. É igualmente difícil assumir seu alô. As rajadas de informações novas me atormentam. Enquanto despisto que não sei nada sobre o que me perguntam, procuro algum papel em que meu pai tenha anotado algo útil.
A morte do meu pai criou uma lacuna em nossas copas. Agora, não sabemos qual tempestade nos levará embora. Ou se o calor ressecará nossas raízes, pelo clarão aberto da árvore que se foi.
Empresário de si mesmo, sem equipe — além da esposa escudeira —, ele organizava as datas dos eventos, era financeiro, assistente, relações públicas e artista num só. Encontro em sua maleta um bloco de notas que foi transformado em agenda. Cada página está dividida em pequenas tiras, nas quais se leem as datas.
Folheio as anotações. Em cada dia, além da cidade agendada, havia espaços para observações: nome e telefone do contratante, o ponto de encontro para o evento, palavras soltas, códigos. Alô, tem alguém aí? O futuro, materializado em linhas retas e pretensa organização improvisada, me atrapalha. O destino interrompeu uma cadeia de eventos natalinos e, de quebra, abateu nossa família. Não sou a pessoa mais indicada para resolver os problemas dos outros, ser órfã me ocupa muito tempo.
(…)
Nos últimos dias, me levanto mais cedo que o restante da família. Desde que minha mãe anunciou que deseja se mudar, entendo que precisamos preparar sua ida para outro lugar. O luto, no entanto, se manifesta em músculos enrijecidos e nos impede de raciocinar, quanto mais empacotar travessas e pratos rasos. Prefiro me sentar na varanda, lavar de forma meticulosa as folhas de alface ou assistir à Sessão da Tarde. Nos dias seguintes à morte, escondemos a apatia em ações obcecadas, os sintomas não batem com nenhuma hipótese de doença. Uma teia nos prende ao reduto dos últimos anos do meu pai — casa, trabalho e jardim. É impossível ouvir a dor do enlutado, compreendê-la.
Cada árvore junto das demais forma uma floresta. Um dia o tronco de uma é consumido por bichos invasores, o que pode dar início ao seu processo de morte. No momento em que ela se desintegra totalmente ou despenca no chão, deixa um espaço oco na arquitetura natural. A morte do meu pai criou uma lacuna em nossas copas. Agora, não sabemos qual tempestade nos levará embora. Ou se o calor ressecará nossas raízes, pelo clarão aberto da árvore que se foi.
Meu pai costumava dizer que toda árvore depende das que a rodeiam. Enquanto em algumas espécies as descendentes crescem ao redor da matriz, desfrutando de um clima previsível e agradável, há sementes de outras que são carregadas pelos pássaros e pelo vento. Tem as que se desenvolvem em qualquer lugar para onde sejam levadas, sobretudo terrenos abertos. Para esse grupo, as que permanecem debaixo das árvores-mães geralmente perdem força. Apenas as transportadas para longe crescem fortes e saudáveis. Foi assim comigo e com meus irmãos. Meu pai se contentou em manter pelo menos uma árvore perto de si.
Em algumas florestas, há espécies que aguardam muitos anos para que a árvore-matriz morra, para, enfim, terem chance de se expandir. Desde cedo, os nossos galhos puderam se estender por onde nossa visão alcançava, definindo nós mesmos o destino e o formato das nossas copas. Com a morte de meu pai, nos sentimos vegetações dependentes de uma poderosa árvore. No catálogo que comprei para tentar classificar o exemplar do nosso jardim, li que espécies que se acostumam a uma posição confortável perdem o equilíbrio quando a mais velha morre. As árvores-filhas levam de três a dez anos para voltar a se equilibrar. Quando eu e minha família encontraríamos o Norte, sem a bússola-dossel que foi meu pai?
Hoje devemos limpar o lado dele do guarda-roupa. O comunicado da minha mãe me orienta de onde estou. A casa de um morto deve se desfazer de seus pertences. Derrubar o sepulcro sem desarranjar suas histórias. Iniciamos, mulher e filhos, seu segundo enterro.
Foto de Leopoldo Cavalcante.