Adriane Figueira é paraense, nascida e criada às margens do Tapajós, mas vive há mais de uma década na capital carioca. Entusiasta da escrita e pesquisadora. Publicou Revoada do dragão (Editora Patuá) em 2021, e Voragem (Editora Folheando) em 2022.
Fiz essa entrevista meio desajeitada com Monique Malcher (1988) em 2021, depois de ler e me apaixonar pelo seu belíssimo Flor de gume (2020). Por várias razões, que não cabem explanar aqui, essa nossa conversa permaneceu inédita até agora. Tanta coisa aconteceu nesses três anos que talvez nem faça mais sentido publicá-la, talvez as questões já sejam outras — certamente são —, mas decidi partilhar no desejo de ecoar ainda mais as palavras de Monique Malcher, suas ideias.
Malcher venceu o Jabuti em 2021, na categoria contos, e está com o segundo livro em edição, seu primeiro romance, pela Companhia das Letras. O texto de apresentação dessa conversa passou por pequenos ajustes, todas as perguntas e respostas foram mantidas do arquivo original.
Monique Malcher é escritora, artista plástica e antropóloga paraense, nascida em Santarém. Aos 18 anos mudou-se para a capital Belém onde fez graduação e mestrado, hoje é doutoranda na Universidade Federal de Santa Catarina e vive em São Paulo. Em maio de 2020 lançou o seu primeiro livro, porém já transita pelo cenário artístico há muito mais tempo. Publicou de forma independente várias zines.
Malcher é um nome em destaque na literatura brasileira contemporânea e um expoente nortista – inspiração para todas as mulheres que escrevem. Flor de gume é o título da sua obra de estreia e foi publicado pela Editora Jandaíra, no primeiro semestre de 2020. Movidas pelas águas inquietas em que a autora navega e que nos convida a navegar, estas questões pretendem semear a poética desse rio profundo de ondas turvas. Um modo de divulgar ainda mais o trabalho dessa mulher-potência.
Flor de gume é um livro de contos ou prosas poéticas, dividido em três momentos: “Os nomes escritos nas árvores, os umbigos enterrados no chão”, “Quando os lábios roxos gritam em caixas de leis herméticas” e “O reflorestar do corpo, o abandonar das pragas”. Os caminhos abertos a partir da organização dessas narrativas nos apontam para uma tríade possível: começos, entremeios e recomeços. Flor conta as histórias de Silvia e de muitas outras meninas e mulheres que se erguem na escrita de Monique Malcher e nos arrebatam com sua vivacidade e força.
1 Como você cria seus universos poéticos? Faz muitas anotações? É mais da intuição ou do método?
Técnica e intuição habitam minha criação. Tenho uma preocupação com a forma do texto para que ela consiga externalizar da melhor maneira a história que quero contar. Sempre releio tudo que escrevo em voz alta, às vezes canto as frases e passo horas em apenas um parágrafo. Cresci em uma família em que a contação de histórias e a oralidade era muito importante, depois tive muitas experiências com sarau ou slam e isso reforçou meu amor pela oralidade. Costumo fazer muitas anotações, não necessariamente escaletas, apenas anotações de pensamentos aleatórios ou assuntos que acredito que preciso estudar mais. Sempre escrevo partindo dessas frases ou ideias, por isso não existe não ter ideia do que escrever ou acreditar em inspiração, não dependo disso pra escrever.
2 Quais são as suas maiores influências para criar suas histórias e personagens? Pessoas do seu convívio ou outras autoras?
Desconforto. Sempre desconforto, ou de situações que não me agradam, temas que me causam agonia ou vergonha. Também o desconforto de ideias que ficam me perseguindo por muito tempo no pensamento, preciso tirar da cabeça e escrevo.
3 De que modo as leituras literárias e experiências subjetivas se derramam na sua prosa poética? Se puder, cite aqui suas leituras de cabeceira.
Ler é o meu momento de prazer, admiro muito várias autoras e a forma como cada uma conta e o que conta, mas não sei até que ponto a leitura é decisiva no que escrevo, acho que pesco mais em outras linguagens, se tratando de produção de artes… a música, o cinema e as artes plásticas me influenciam muito na construção de imagens e ter outras referências. Para o meu trabalho visual busco referências na literatura, é tudo na contramão. Acho que isso me aprisiona menos nas ideias, quero me manter aberta para os sinais que chegam de todos os cantos. Na minha cabeceira sempre tem muita poesia e contos. São muitos nomes, mas os que sempre estão comigo são Conceição Evaristo, Sylvia Plath, Maya Angelou e Eneida.
4 Qual tipo de vínculo onírico você tenta estabelecer com os seus leitores? Qual é a sensação de ser lida?
É uma das melhores sensações da vida, mais do que isso saber que ser lida é também abrir debates, aprender com os leitores.
5 Como os seus trabalhos antigos engendraram a escritora que você é hoje?
Os erros que cometo e ainda vou cometer são muito importantes para a escrita que desejo. Não ter medo dos julgamentos e me preocupar apenas em contar a história que quero da maneira que me agrada e que julgo ser a mais adequada para o momento, é nisso que mais me foco e fui aprendendo com o tempo que o julgamento sempre vai existir, você temendo ou não. Escolhi não temer.
6 Em que medida, durante o processo de escrita de Flor de gume, estes outros trabalhos ecoaram?
Escrever zines é algo que amo, principalmente porque a linguagem é mais solta, sem obrigações de servir um prato de regras e clichês. A zine me deu e me dá essa vontade constante de escrever o que quero e da minha maneira, sem querer entregar algo esperado ou que sirva ao ideal de mercado. Faça você mesma, seja você mesma. A literatura independente me ensinou isso. Vender meus escritos em bares e na universidade também me ensinou muito em acreditar no que faço. O trabalho que tenho com as palavras precisa ser valorizado, e isso começa por mim.
7 Conte um pouco sobre a organização do Flor e esses ciclos hídricos em que essas teias femininas se assentam?
Água é sentimento de calmaria, mas também de luta, isso me diz muito. A água e a viagem embarcada são os pontos de partida do Flor de Gume. Aliando conteúdo e forma posso dizer que gosto de textos que começam no movimento, a vida é assim, você chega e ela já está acontecendo, penso o mesmo da criação literária. As partes são divididas de acordo com o crescimento da personagem principal e os momentos chave dessa viagem de vida. Gosto muito de haicais, os títulos das partes flertam um pouco com isso.
8 Sua escrita soa muito íntima. Você, às vezes, se sente invadida com determinada leitura ou comentário?
Algumas pessoas confundem e buscam pistas sobre mim ou minha vida particular nos meus textos, esse tipo de coisa não tenho como controlar. Não me sinto invadida com isso, porque faz parte do trabalho. O que me causa esse sentimento são aproximações forçando um flerte ou intimidade com a pessoa Monique, não ultrapassando esse limite tudo bem.
9 Após a leitura do Flor de gume, a sensação que fica é de uma intimidade compartilhada, como você lida com as múltiplas impressões de seus leitores?
Fico muito feliz e triste ao mesmo tempo. Feliz de ouvir várias mulheres falando que o livro foi um ponto de virada pra elas entenderem situações de violência do passado e se cuidarem. Também feliz com homens falando que não querem ser o pai do livro. O que me causa tristeza é saber que quase todas as mulheres que leram relatam terem se visto em algum tipo de violência do livro, isso diz muito sobre o caminho contra a violência intrafamiliar que temos que percorrer.
10 Quais são os próximos passos? É possível revelar ou podemos esperar uma grande surpresa?
Estou escrevendo um livro novo, sem prazos pra sair, não tenho pressa. Também pretendo lançar uma zine no segundo semestre. Esse ano vou ministrar vários cursos e vão começar os encontros do clube de escritoras paraenses, que participo da coordenação. Animada apesar de tudo que estamos vivendo.
Desenho de Ariyoshi Kondo.