Queime! Queime! Queime!: a palavra – Potlatch, de Guilherme Gontijo Flores, por uma poesia da palavra

por Pedro Torreão
Foto de Luísa Machado para ilustrar a resenha de Pedro Torreão sobre Potlatch, de Guilherme Gontijo Flores.

Pedro Torreão (1988) é recifense, sociólogo e poeta. Mora em São Paulo desde 2017 e lançou o livro Pão só (Editora Urutau, 2021) pelo qual recebeu menção honrosa no Prêmio Maraã de 2019. Tem poemas publicados em revistas como Aboio, Ruído Manifesto, Lavoura, entre outros.


Se houver um antigo pilou diante do qual não estivemos, lá
entre os Wii…etc., que esse inhame se precipite até eles como
outrora um inhame semelhante veio deles até nós…
(Descrição de pilou-pilou, sistema de festas da Nova Caledônia, descrito por
Leenhardt e citado por Marcel Mauss em Ensaio sobre a dádiva)

Que tudo se inicie pela palavra: Potlatch. Dar. Um presente. Vinda de rituais festivos de culturas nativas criados e praticados no noroeste do Pacífico do Canadá e dos EUA, e, mais do que isso, um sistema econômico – proibido durante décadas nos países sob a acusação de perda irracional de recursos. Dentro desse sistema econômico, em meio a um sistema mais amplo de dádivas, os excedentes são dados ou destruídos como forma de demonstração de poder e riqueza da liderança de clãs, mas também reafirmam laços, família, conexões humanas e sobrenaturais. Guilherme Gontijo Flores (1984), em Potlatch (2022, Todavia), oferece, dá e queima, diante de nossos olhos, aquilo que nos é mais caro dentro da poesia: a palavra.

Quando Décio Pignatari nos diz que “a poesia é a arte do anticonsumo”, ele afirma a potencialidade intrínseca de racionalizar o dito irracional. Não há acúmulo. O excedente ganha força exatamente no seu uso, na sua ação na página, na sua queima. Não há o que poupar, não há a quem poupar. Que se use a palavra, que se crie a palavra, ainda que em fogo, mesmo que em presente.

A palavra

Essa unidade de língua escrita, a palavra, tem papel fundamental dentro de Potlatch. Ela transita e flui tanto na repetição como na singularidade, num jogo que a permite ser vista por todos os ângulos, como objeto vivo, como significado em jogo.

Durante a primeira parte do livro, intitulada A parte da perda, a palavra ganha espaço a partir dos movimentos de adjetivação e tonicidade, constantemente com as duas particularidades em conjunto. No poema Cruzo estas portas, podemos sentir essa dinâmica dupla no jogo construído:

Cruzo estas portas, estranho-me o asco
de sempre, dou corda à caixa de música
que está quebrada: a bailarina brusca
nas rotas insólitas de outro fiasco 
(…) 
que isso tudo tão certo seja; excito
-me como moleque no canto, fanho 
como um tiro errado, ganso balístico,
põe o agasalho inútil, garro o ranho
preso nas botas (as portas): persisto.

Enquanto a adjetivação nos reforça o peso da palavra através de sua singularidade – aqui faço questão de afirmar meu apreço pessoal pelo ganso balístico –, a tonicidade une essas perspectivas privadas da palavra com o todo no poema, num jogo de sílabas tônicas que se vertem e invertem dentro do poema. Ritmo em prol da coesão de significados.

Em Colheita Estranha, segunda parte desse Potlatch, vemos a palavra como matéria; às vezes também como corpo. Num deslocamento que traz a palpabilidade à coisa escrita: reconhecer e sentir. Palavras-corpo – como molares, ossada, mucosas e cutícula – entram em cena, explorando um erotismo quase masoquista, em que colhemos as partes, estranhas, para formarmos o todo; mesmo que através da dor, como no poema Cadáver adiado que procria:

escaras que se acumulam
sobre os olhos fatigados;
dentes dormindo juntos
em caixinhas de colares;
este todo que segue
a cada instante para longe
numa distância ínfima
de mim em mim, de mim a mim;

Terça e menor parte da obra, Três estáticas exalta o substantivo, indo além da denotação gramatical. Cavamos atrás da essência, da substância una, do que é próprio. Nomes pululam, brotam, em títulos e conteúdos. Nomes mais do que próprios, dotados de sentidos culturais em cada um de nós. A voz de Ariel, a evocação biográfica de Ernst Herbeck que se funde em obra e autor – será que são unidades separáveis, uma vez que são tão próprias em título e nome, afinal? —, ou na simples e sofisticada intersecção entre nomes que só resistem juntos, mesmo longe, mesmo irreconhecíveis, como em 3. Outro mendigo junto à porta, que fecha a parte:

Penélope perfeita em seus recintos:
o nome de Odisseu sou eu.

Em Cantos pra árvore florir, último momento da obra, é iminente o dinamismo, a palavra como fluxo contínuo, como processo e procedimento. Em Dez imagens da vaquejada pasta a palavra, não o animal, em processo contínuo (um adendo: na terceira parte do poema, Olhar o boi, com o verso em ramos papa-figo entoa entoa, encurralado ficou o boi, e eu). Esse movimento tem seu ápice no poema título do livro, que também o encerra.

Num movimento de espelhamento e deslocação – ferramenta já usada em outros momentos desse Potlatch, seja no poema Tudo termina, através da oposição lógica do sentido, seja no espelhamento direto, repontuado e reconstruído em Per speculum in aenigmate

Em Potlatch, poema que deixo a deixa para que leiam, há o movimento guiado, construído, como uma própria ancestralidade que se pega e se paga, onde dar e receber é obrigação, assim como no noroeste do Pacífico. Retribuição.

Contradons&Contraprestações

Hoje, na poesia, percebo um movimento contrário à dinâmica da palavra. A poética e os poetas tendem a orbitar num contexto contiguidade, no qual a construção narrativa tornou-se protagonista, enquanto a palavra foi relegada a uma posição coadjuvante, perdendo o impacto potencial de ser um movimento vertical na página e no poema, para virar um objetivo horizontal, na obra. A poesia de hoje esvazia a força-signo da palavra. Gontijo Flores, em Potlatch, nos dá essa profundidade: o elemento textual como centro gravitacional da poética. Não quero dizer aqui que não há contexto. Muito pelo contrário. A palavra se insere e se constrói em relação ao mundo. A palavra dá o contexto; não é o contexto que gera a palavra.

Nesse potlatch de Gontijo Flores, recebemos a palavra e, pelas regras desse sistema de trocas, nos resta retribuí-la. Mais do que isso: é fundamental entendermos onde repousamos no exato momento em que fechamos o livro e respiramos fundo. No espaço entre o dom (ou dar) e o contradom (ou retribuir) há, como Pierre Bourdieu nos fala, a possibilidade de “viver a troca objetiva como uma série descontínua de atos livres e generosos”. Todo combate e destruição, próprio do potlatch, reside na matéria, no objeto dado em contraprestação. É essencial que desperdicemos o objeto, que joguemos no mar as moedas de cobre, que, no nosso caso, queimemos a palavra. Não há acúmulo nessa lida. É urgente usar, repetir, destroçar, jogar fora, destruir.

No potlatch, aceitar é se comprometer, não somente com o objeto, mas com tudo que vem com ele:

a alma dos mortos que assistem e participam da cerimônia, e das
quais os homens carregam o nome, e também sobre a natureza

Em Potlatch, também. Enfim, ut des.


Foto de Luísa Machado.

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