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Paulina Chiziane ulula triunfos no miradouro do mundo

por Adriane Figueira
Foto de Luísa Machado para ilustrar a resenha literária de Adriane Figueira, sobre o livro "O alegre canto da perdiz", de Pauline Chiziane.

​Adriane Figueira é paraense, nascida e criada às margens do Tapajós, mas vive há uma década na capital carioca. Tem um gato amarelo chamado John Lennon. É licenciada em Letras (UFPA), mestra e doutoranda em Estudos Comparados de Literaturas (USP). Entusiasta da escrita, pesquisadora, revisora, professora e poeta intimista. Revoada do dragão (Patuá, 2021) é seu primeiro livro. Filha do raio e da tempestade, uma lírica desassossegada. Escreve quase todos os dias para não sucumbir ao labirinto dos sonhos e das vontades.


Perdiz é um pássaro que faz seu ninho na terra; seu voo só se completa quando sente o perigo e há grandes diferenças entre machos e fêmeas. Um pequeno passeio por livros de biologia animal e notamos algumas características peculiares na espécie, mas por qual motivo falar sobre isto aqui? Porque a obra de Paulina Chiziane evoca já no título a ave no feminino.

O alegre canto da perdiz (2008) é o sexto trabalho em prosa de Paulina Chiziane que foi a primeira mulher a escrever e publicar um romance em Moçambique. Li este livro com um atraso monumental, pois desde 2012 as literaturas africanas de língua portuguesa povoam meu imaginário e figuram protagonistas nos meus interesses acadêmicos. Já havia lido alguns trabalhos de Chiziane, inclusive em poesia, já que a autora é mais reconhecida pela sua prosa e uma parte da sua obra está publicada no Brasil. A edição sobre qual me debrucei é a portuguesa, publicada pelo Editorial Caminho em 2008, mas há uma edição brasileira de 2018 publicada pela Dublinense.

No último ano, a moçambicana conquistou a maior honraria literária da língua portuguesa, o Prémio Camões e em 2003 já havia conquistado o Prémio José Craveirinha de Literatura. Demorou, é verdade, mas veio e foi muito emocionante ver uma mulher africana — a primeira — que faz literatura há tanto tempo, enfim, premiada. Paulina Chiziane é, sem dúvida, uma das maiores escritoras vivas de língua portuguesa. Ler sua literatura é um exercício para além de um prazer estético, é um movimento libertador, urgente e necessário.

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O alegre canto da perdiz, de modo bem geral, narra a história de uma família que se desintegra, se expande, se abandona e se reúne; nascida imersa no horror e na pobreza que o colonialismo europeu lançou em África por muito tempo, no caso de Moçambique, Portugal que deixou um rastro de aniquilamento cultural e humano.

O cenário é a ​Zambézia, uma província situada na parte central de Moçambique, lugar onde se passa a narrativa de Chiziane. É importante dizer a localização, pois há muitas Histórias dentro da ficção. Vamos peregrinar com as narradoras e as personagens pelos Montes Namuli, cruzar fronteiras, caminhar pelas ruas, pelas areias da praia, trafegar pela noite e seus mistérios.

Há, nesta obra, uma sobreposição de acontecimentos, a realidade se imiscui com o fantástico, com os mitos matriciais fundadores. Olhamos a vida do povo por dentro, no fundo dos olhos de gerações de mulheres que constituem esse todo heterogêneo, o velho e o novo, a comunhão nada pacífica entre brancos e negros, entre negros e negros, entre brancos, negros e o outro — a nova raça que surge da junção dos primeiros: “O colonialismo já não é estrangeiro, tornou-se negro, mudou de sexo e tornou-se mulher”.

São as mulheres que fertilizam e povoam as terras, são as mulheres que sacrificam suas linhagens, que enlouquecem perante a destruição de suas fases. Crianças tendo suas infâncias sequestradas, acordos selados na obscuridade, ilusões, feitiços que dão errado, promessas vazias de uma vida nova e fugas, muitas.

No texto de posfácio, Nataniel Ngomane fala sobre a fluidez deste romance e de como ele inaugura, de certa maneira, um novo modo de ver e dizer a partir de um olhar autóctone. Ngomane sublinha o poder das palavras de Paulina Chiziane, ao que ele se refere como lúcidas. Para ele, a Zambézia é mais que uma localidade, é uma personagem que imprime o movimento dos acontecimentos, é “o centro do cosmos, que tem nos Montes Namuli o ventre do mundo”. É nesta terra arrasada onde a humanidade se ergue, é nesse lugar de sombras que a luz do sol invade e orienta, desenha a fuga e esconde a fugitiva.

Paulina Chiziane empresta sua pena e reescreve a história com olhar de quem está dentro e percebe com clareza os movimentos. Suas personagens materializam tempos, são humanos passíveis de erro e acerto, às vezes por vias tortas e com derramamento de sangue, às vezes com a força do desespero, do querer e do desejo. 

A narrativa se inicia com a mulher nua na beira do rio, num gesto de arrebatamento. Não há uma erotização do corpo negro feminino, mas uma potencialização da força dessa mulher exilada, estrangeira. Não é uma sereia, é uma mulher lida como louca pela comunidade, uma forasteira que busca com os olhos vidrados o que dela foi arrancado na força bruta: “Há uma mulher na solidão das águas do rio. Parece que escuta o silêncio dos peixes. Uma mulher jovem. Bela e reluzente como uma escultura maconde. De olhos pregados no céu…”.

A mulher da beira do rio é Maria das Dores; maria que é sinônimo de mulher e dor no plural desenham o seu nome próprio: o individual e o coletivo. Ela funciona como a grande mãe (África) do mundo vinda de lugar nenhum, à procura do reencontro. No seu olhar vemos o horror e o espanto de quem vaga, de quem caminhou muitas distâncias e ainda não encontrou o que buscava: “Tenho o coração quebrado. O silêncio e a solidão me habitam. Eu sou a Maria das Dores, aquela que ninguém vê”.

Maria das Dores é filha de Delfina e José — a prostituta ardilosa e interesseira e o homem sem presente e nem futuro, um condenado ou como diz a própria Delfina, um pobre desgraçado. Maria tem uma irmã, Jacinta, filha de um português amante de sua mãe e que mais tarde abandona sua família branca para viver com a sua nova esposa. Maria é usada como moeda de troca e tem sua infância e adolescência roubadas. Ela é violentada aos 13 anos por Simba, o feiticeiro da localidade, em presença de sua mãe e nunca mais volta para casa, para o convívio com seus irmãos — um de cada raça. Seu pai sipaio se perde no mundo, torna-se assassino, aceita a assimilação em troca do amor de Delfina, que não tolera a pobreza imposta pela sua cor escura, por isso só pensa em “melhorar” a raça. Em casa, Delfina faz distinção entre as filhas, enquanto Jacinta brinca e estuda, das Dores é a empregada.

​ É difícil controlar o impulso do julgamento, Delfina é uma personagem muito complexa, é uma pessoa cruel e fria, mas há muitas camadas de subjetividade e uma vivência desumana que molda, de certa forma, seus comportamentos que não inspiram empatia: “Sou uma árvore seca de ramos, não sou nada. O meu nome é sátira e cantiga. Aclamada no gozo e no escárnio. Refugiada na lembrança doce dos tempos de brilho. Estou na dança da carne assando na brasa. Eu, pecadora, me confesso… estou no deserto da vida morrendo de sede!”.

Serafina é a mãe de Delfina e avó de Maria das Dores e Maria Jacinta, seu marido não aceitou a assimilação, não se dobrou às imposições do invasor português. Delfina é uma prostituta conhecida, os marinheiros caem aos seus pés, as esposas a detestam. Ela é vaidosa, ambiciosa e não mede consequências para ter o que quer. Ela é a mulher responsável pela perdição de todas as personagens do romance, ela orquestra o fluxo dos acontecimentos, das mudanças de trajetos, ela afasta e reúne, ela gera o novo oferecendo o seu ventre e suas promessas.

Há sumiços, quase mortes, evocações de espíritos, há mulheres e homens adoecidos pelo descaso, pelo abandono, há o apagamento do outro, o florescimento do novo. Há muita violência e desigualdade, mas há também esperança no porvir engendrado pela vida que nasce do ventre feminino, dos Montes e alimenta o mundo: “O céu azul foi chocado nos Montes Namuli, num ovo de perdiz. Nasceu com asas de pássaro, voou e colonizou a terra inteira. Aqui nasceu a primeira estrela, do ovo da mesma perdiz, estalou até ao céu, explodiu e espalhou-se como fogo-de-artifício formando a Via Láctea. É aqui o princípio do mundo. O fim do mundo”.

O alegre canto perdiz é um relato poético poderoso que transita pela escuridão e sobrevoa terras arrasadas. Aqui caminhamos sem mordaças ou vendas. Paulina Chiziane empresta sua pena e reescreve a história com olhar de quem está dentro e percebe com clareza os movimentos. Suas personagens materializam tempos, são humanos passíveis de erro e acerto, às vezes por vias tortas e com derramamento de sangue, às vezes com a força do desespero, do querer e do desejo. 

Serafina, Delfina, Maria das Dores e Maria Jacinta: avó, mãe e filhas. Quando o sonho se transforma em castigo, suplício e miséria? Aqui, todo mundo perde e depois ganha, o resgate é lento, a voz que fala, delira. Como pode haver tanta beleza na desgraça, no descaminho? Não consigo formular respostas, a Literatura move o invisível e o impossível. A escrita de Paulina Chiziane é um deleite assombroso, a autora oferece uma obra majestosa, a poética da dor que arrebata, da beleza simples, da volúpia dos gestos e do amor, sim, do amor que rompe as margens todas e persiste com o fluxo das águas. Morte e vida num ciclo interminável: “Nascemos ao canto das perdizes, gurué, gurué!”.


CHIZIANE, Paulina. O alegre canto da perdiz. Lisboa: Caminho, 2008.


Foto de Luísa Machado.


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Mais sobre a obra

“Eu nunca escrevi diários! Isto aqui é um extravasamento, um inventário estilhaçado, sem datas fixas no calendário, sem horários demarcados — guiado por Kairós”. Assim escreve no preâmbulo a autora de cacos retidos na margem, nomeando Kairós como preceptor de sua jornada entre a prosa e a poesia e, nesse simples ato, recusando a medida, a exatidão e a linearidade.

O tempo da palavra de Adriane Figueira é o do extravasamento. Os textos desse livro são desenhos sutis, quase oníricos, de um labirinto de memórias e vertigens que, solitário e vigilante, assoma como possibilidade de um contágio verbal que desoculta as tempestades da nossa experiência.

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