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“Nossa memória está fora de nós” – O tempo palimpsesto em Annie Ernaux

por Adriane Figueira
Foto de Luísa Machado para ilustrar a resenha de Adriane Figueira sobre o livro "Os anos", de Annie Ernaux.

Adriane Figueira é paraense, nascida e criada às margens do Tapajós, mas vive há mais de uma década na capital carioca. Entusiasta da escrita e pesquisadora. Revoada do dragão (Patuá, 2021) é seu primeiro livro.


“A mulher deve colocar-se no texto – como no mundo
e na história – pelo seu próprio movimento. O futuro não

deve mais ser determinado pelo passado.”
(Hélène Cixous)

​Há poucos meses tomei conhecimento da escrita de Annie Ernaux (1940) — considerada um dos grandes nomes da literatura francesa da atualidade — através do cuidadoso trabalho da editora brasileira Fósforo, que publicou três de suas grandes obras: O lugar, Os anos e O acontecimento. Nosso encontro não poderia ter sido mais encantador. Fiquei muito tocada com o modo de narrar tão assentado no emaranhado da realidade vivida. Aquele toque de autobiografia que me faz sentir tanto e de tantas formas a écriture feminine — para utilizar uma expressão de Hélène Cixous, feminista argelina radicada na França.

O palimpsesto é, por definição etimológica, uma superfície que pode receber muitos registros. Uma espécie de manuscrito raspado em que é possível documentar, apagar e reutilizar. A sensação de abismo que um tempo palimpsesto proporciona, de acordo com as colocações de Annie Ernaux em Os anos (2021), é o próprio movimento da escrita ou do desejo de escrever, reescrever, inventar. A autora sobrepõe tempo e espaço, reordenando suas experiências a partir de um labirinto de eus que se multiplicam e se fragmentam.

Os anos — originalmente publicado em 2008 pela Gallimard, vencedor de prêmios europeus importantes — é uma obra que percorre um longo período. Cobre muitas décadas de existência da narradora que, neste caso, é a própria autora — subvertendo os papéis fixados e redirecionando sua prosa autoficcional. Dando continuidade ao seu projeto literário, ela reconstrói e reúne fragmentos da memória a partir de acontecimentos históricos, tecnológicos, sociais, políticos; mas, principalmente, por fotografias datadas e situadas, suas e de conhecidos.

A mulher vive enquanto pensa sobre a escrita deste futuro livro, o labor consome as horas e ela vai adiando o encontro inescapável com o vivido e o vindouro.

A lembrança é acionada e convocada através da contemplação destas imagens: “(…) as imagens reais ou imaginárias, que permanecem conosco durante o sono, as imagens de um único instante tocadas por uma luz que só pertence a elas.” Há essa passagem do tempo histórico e a intimidade da mulher que escreve. Presente, passado e futuro se imiscuem formando um mosaico.

​ A autora recupera momentos decisivos da História do século XX e dá boas-vindas ao novo milênio. Para além de rememorar sua vida e a vida de seus familiares e outras pessoas próximas, a narradora presencia e divide com seus leitores as grandes transformações ocorridas no mundo, especialmente na Europa, a partir da França. ​Os anos funciona como uma espécie de autobiografia impessoal, uma colcha de retalhos que percorre tantos lugares, línguas e cenários.

Annie Ernaux se inscreve para além do eu que viveu e observou o entorno. Um eu transformado em ela — a criatura que transita de fora para dentro, próxima das margens geracionais, no entrelugar. Revisita seu álbum de retratos, as cores, os espaços, as companhias. A mulher vive enquanto pensa sobre a escrita deste futuro livro, o labor consome as horas e ela vai adiando o encontro inescapável com o vivido e o vindouro.

*

Em 1940, nasce a menina em meio à Segunda Guerra Mundial. Suas origens estão no campo, numa pequena cidade da Normandia, de família operária e pobre. A criança cresce sem irmãos, reproduzindo costumes: “Nas conversas ao redor de uma mesa em dias de festa, nós seremos apenas um nome, cujo rosto vai se desvanecer até desaparecer na massa anônima de uma geração distante.” Almoços aos domingos com parentes em volta da mesa, adultos saudosos e barulhentos, algumas mudanças de endereço, o comércio dos pais — pessoas com pouca educação formal da qual, quando adulta, ela se envergonhará e se questionará sobre a vida burguesa e seus fúteis códigos de conduta que ela chamará: arrogância.

Transformações políticas, crises econômicas e humanitárias, o avanço cada vez mais veloz do fascismo, do capitalismo. A miséria, a xenofobia, conflitos sangrentos e racistas na Argélia, os árabes “invadindo” a França e sendo massacrados. Ela frequenta a escola normal e se destaca, depois o intercâmbio na Inglaterra, a Universidade e os exames para docência — ela foi professora por um longo período. Canções famosas tocam nas rádios, a TV em cores chega as prateleiras das lojas junto com as máquinas de lavar louça, a contracultura, os movimentos sociais, os contraceptivos, a juventude revolucionária. Maio de 1968, carros mais velozes, a ascensão dos discursos feministas, o Vietnã, os walkmans e fones de ouvido, os golpes de estado, Cuba, as ditaduras na América do Sul, a Guerra Fria, o terrorismo, os computadores, a internet, os celulares, o 11 de setembro…. E isto não é um livro de História, tão pouco um tratado sociológico, ensaio jornalístico ou uma pesquisa antropológica. Isto é Literatura, com maiúscula.

A narradora foge à loucura que a persegue desde sempre, fixa no espelho que a desloca e estilhaça sua imagem.

A palavra corajosa de uma mulher que se coloca no centro da sua narrativa, no lugar em que tudo é, foi e será. Porque assim como o desejo sexual, a potência da memória jamais se interrompe e Annie Ernaux nos mostra isso da primeira à última página dessa prosa inclassificável. Lágrimas, gozo, aborto, sonhos, trabalho, escrita, casamento, filhos, amantes. O livro se ergue dos escombros, vestígios embaciados, memória nublada e silenciosa, quando a infância e a velhice se confundem.

Ela questiona sua escrita, a recepção do público, o mundo que ela habita e que não se distingue: “Não existe um ponto de interseção entre o que acontece com ela, são duas retas paralelas, uma é abstrata, toda feita de informações que chegam, mas são logo esquecidas, e a outra é fixa.” Como organizar e selecionar tantos fatos? Como escapar das armadilhas da memória, do tempo, da própria sombra? O envelhecimento da mulher verbalizado, documentado. Um meio diário às avessas, reescrito, inacabado, eterno.

A narradora foge à loucura que a persegue desde sempre, fixa no espelho que a desloca e estilhaça sua imagem. Eu – ela, eus — outro, só a escrita pode salvá-la, é assim que ela encara sua existência no mundo: “No ‘eu’, há muita permanência e alguma coisa apertada e sufocante. No ‘ela’, muita exterioridade e distanciamento.” Fluxo de luz e sombra, raso e profundo.

Salvar cada instante é poder navegar pelo tempo impossível que só ganha contorno quando escrito e reescrito, pergaminho raro. Ser corpo e reflexo, espelho que conduz o olhar e os gestos — sempre imprecisos, audaciosos. Um desejo avassalador de “Salvar alguma coisa deste tempo no qual nós nunca mais estaremos”.


ERNAUX, Annie. Os anos. São Paulo: Fósforo, 2021.


Foto de Luísa Machado.


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Mais sobre a obra

“Eu nunca escrevi diários! Isto aqui é um extravasamento, um inventário estilhaçado, sem datas fixas no calendário, sem horários demarcados — guiado por Kairós”. Assim escreve no preâmbulo a autora de cacos retidos na margem, nomeando Kairós como preceptor de sua jornada entre a prosa e a poesia e, nesse simples ato, recusando a medida, a exatidão e a linearidade.

O tempo da palavra de Adriane Figueira é o do extravasamento. Os textos desse livro são desenhos sutis, quase oníricos, de um labirinto de memórias e vertigens que, solitário e vigilante, assoma como possibilidade de um contágio verbal que desoculta as tempestades da nossa experiência.

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