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Fumaça

por Fernanda Germano
Fotografia: Panorama do centro do Rio de Janeiro a partir do Morro do Castelo – Marc Ferrez (Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles).

Fernanda Germano é leitora, estudante de Medicina e escritora. É autora dos romances Cegueiras na Calçada (Voz de Mulher, 2022) e Pelas Frestas (Penalux, 2023). Escreve para garantir voz a quem deseja falar também.


Sucateira é quem faz dos restos de vida uma vida.

Fumaça

“Toda vez que morre uma mulher, outras renascem. 

É condição da vida das filhas e das netas iniciarem a viver somente quando uma antepassada falece. Da mesma forma, minha mãe tinha de morrer para que eu e Eva continuássemos vivas – melhor: para que iniciássemos a vida. Mas eu não morreria ainda em meio às chamas. Caso eu lhes permitisse o poder de retirarem-me a vida, notei que partiria sem me despedir. Eu, no entanto, desejava a despedida: nada há de mais bonito do que dizer ao outro o que se quer.

A fumaça tomava o barraco. 

Enfiava-se na madeira úmida após as chuvas fora de época. O que eu via eram cinzas. O teto desabava seco. Levou consigo meus colchões, meu fogão e a cadeira que costumava ser da minha avó. Como não tinha cômodos, posso afirmar que todo o barraco foi destruído. Não houve sobras no quarto ou na cozinha, pois não havia quarto ou cozinha e a divisão não existia na comunidade. Era tudo um; éramos todos uns. Nas paredes, não havia estrutura ou concreto; havia somente o desenho que eu fiz para a minha irmã – que eu não tive. 

As madeiras laterais passaram a servir de pavio invertido: o fogo começara de baixo, foi a tomar as partes medianas, chegou ao topo e se alastrava por toda a estrutura que Rubião reformara com a pouca mão que tinha. Eva chorava. Com as fraldas encharcadas, Eva chorava de desconforto. Um choro arregaçado, com o qual eu não estava pronta para lidar. Em cada espaço, o fogaréu se achava e adentrava sem piedade a vida de quem não tem vida dentro da vida. Perdíamos o mínimo que tínhamos. Interrompia minha respiração de tempos em tempos, para ver se morria depressa. Mas Eva me encarava com aqueles olhos gigantes, fundos, melosos de remela, e eu me sentia obrigada a agir. Pensava o que poderia fazer frente à situação. 

Eu queria poder engoli-la, para fazê-la viver somente em mim. E poderia deixar a menina, bater em retirada, salvar-me, experimentar o que ainda estava por vir, dizer que morrera a criança nas chamas… Mas eu não teria tal coragem. Em certa medida, não notava o desastre em andamento. Nem reparava na sua magnitude. Acostumada aos baques, o incêndio era uma tragédia em curso fantasiada de normalidade. Estávamos habituadas à água da chuva a invadir-nos o espaço, mas o fogo era pior: tomava tudo com mais afinco e nos marcava, na pele.”


A expulsão

“Senti trovões na barriga.

Era a recusa de Eva em permanecer em mim por mais tempo. Minha avó havia me explicado.  Quando você sentir que vai vir a dor, é porque ela tá dizendo que quer te deixar livre e quer ser livre também. Era Eva a desejar a liberdade.

Notei, de primeira, que o parto vinha próximo. Estava sozinha no barraco. Minha avó havia falecido há três meses, vítima de velhice – era a mulher mais antiga do mundo. Minha mãe, por sua vez, era como morta também: mal a via no barraco. Quando minha barriga começou a crescer, a avantajar-me para frente, ela resolveu deixar-me aos cuidados do barraco e passou a viver longe, não sem onde, não sei com quem. É pra você ir se acostumando a ser mãe, ela dizia. Ser mãe era também, para todas as mulheres da minha família, ser uma sozinha.

Os pezinhos de Eva me empurravam de dentro, a me impulsionarem para pedir ajuda. Ela não queria nascer já tão abandonada. Segurei o ventre por baixo. O peso do que em mim crescia me tornava mais corajosa; abri a portinhola do barraco, que caiu sobre a lama. Pisei-lhe por cima, os chinelos a arrebentarem diante de qualquer mau olhado. E Eva já me chorava, lá de dentro, presa, querendo sair. Ensaiei a passagem à ruela e desaguei. Em lágrimas, tive uma vontade súbita de fazer xixi. O que eliminei, porém, fora o líquido que envolvia minha futura filha: eu havia estourado.

Passei, vagarosa e curvada à frente, com a dor excruciante que se sente quando se cria algo, por algumas moças da comunidade. Senti seus olhares sobre a minha figura, tão cansada e tão omissa há tempos. É aquela que engravidou de primeira do Rubião, a não-mãe com filha… Ela não vai dar conta nem de parir a criança. De pequena que era, tornei-me menor. Dei de cara com o morro que descíamos para atingir a estrada municipal, onde já havia asfalto. Queria descê-lo a rolar, para ver se, enquanto isso, Eva me saísse naturalmente por baixo ou pela boca – o que lhe parecesse mais fácil. Eu já me transformava na sua serva.

Sentei no chão. As pernas abertas, a deixarem ver a minha calcinha e os pelos com os quais eu apenas iniciava o contato. Eram duas da tarde; os únicos na rua eram desocupados. E eu não tinha amparo algum. Tirei a calcinha – ensopada. Abri mais as pernas, deitei as costas, suei. Eu já tinha visto alguns partos realizados pela minha avó no barraco; eram todas meninas assim, da minha idade. Fiz delas a cópia: fiz força, sem perceber que a fazia voluntariamente.  Forcei sete vezes, até que senti uma gigante pressão na abertura da vulva; era a cabeça. A barriga não me deixava observar entre as pernas. Na vontade incontrolável de libertá-la de mim, forcei mais. E Eva foi soltando o choro para os ares. Moveu os ombrinhos e os bracinhos. As perninhas foram eu quem removi. Peguei-a, ensanguentada, repleta de gosma; era realmente a minha filha.

Levantei.

No topo do morro, sobrou pouco sangue meu – ele havia revestido Eva por inteiro, impregnou-se nela, no seu corpinho, abençoou-a. Olhei em volta: a cena estava parada no mesmo ato em que eu havia visto primeiro, antes do parto. Agarrei Eva com mais afinco. Voltamos ao barraco. Lá, minha mãe estava já estirada na poltrona da vovó, fumando um cigarro.

Mamãe, olha o que aconteceu. – e mostrei-lhe o que portava nos braços.

(Ela levanta as sobrancelhas e volta a mirar a televisão usada que pegamos do vizinho, que mostrava apenas a metade inferior das imagens).

Agora eu sou uma mamãe também.

Hum…

A gente tem outra coisa em comum agora. A gente já foi filha; agora, a gente cria outra filha para continuar a história. Não é assim que a vó sempre falava?

Ela não respondeu.

Enchi um copo de água da torneira. Ultrapassei o lençol pendurado entre a parte anterior do barraco e os fundos. Estirei minha toalha no colchão onde dormíamos e repousei Eva sobre o pano. Limpei-a, molhando as beiras da toalha na água, a fazer-lhe mais um carinho que um favor. Disse-lhe, baixinho, para mamãe não ouvir e não achar que eu era mole demais:

Eu acabei de expulsar você de mim. Mas só para te fazer pertencer a um lugar melhor aqui fora.”


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Mais sobre a obra

Fernanda Germano, jovem autora e estudante de medicina, escreve livros com o frescor e o encanto de quem ainda se regozija dos poderes da literatura de espelhar e mudar o mundo. E é por meio desse novo olhar e desse envolvimento que Fernanda constrói “Pelas frestas”. No romance, a autora se dispõe a destrinchar a existência feminina nas periferias, abraçando, analisando e criticando os aspectos que tornam essas vidas tão difíceis.


Fotografia: Panorama do centro do Rio de Janeiro a partir do Morro do Castelo – Marc Ferrez (Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles).

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