A Fresta é uma coluna quinzenal dedicada às realizações do movimento surrealista e seus entornos.
Saindo de casa…
Jacques Halpern
Tradução por Natan Schäfer
15 de março de 1947
Ao sair de casa naquele dia [1], contra meu costume, peguei a rua des Lombards e dobrei a esquina da rua Saint Denis.
Atravessando a rua Rivoli meus olhos se fixaram de modo especial na Torre Saint-Jacques (como vivo nos arredores desse monumento, geralmente não presto muita atenção nele).
Estas palavras: Torre Saint-Jacques ficaram se repetindo e me pareciam curiosamente insistentes. Mal pude me dar conta: chegando às margens da praça Châtelet, me surpreendi ao fitar intensamente o número do ônibus que entrava na rua Saint Denis: 21.
Naquele momento, soaram 3 horas no Palácio da Justiça.
Tudo aquilo me espantava, mas sem dúvida eu teria passado ao largo caso não tivesse percebido, a ponto de não poder negar a evidência, a seguinte frase:
Torre Saint-Jacques, dia 2, 3 horas.
Foi só tomar consciência daquela mensagem e a angústia que me apertava deu lugar a um salutar/aliviador relaxamento.
Naquela noite e nos dias seguintes meu pensamento estava fixo naquilo e só me liberei da obsessão ao lhe dar a chance de um encontro.
O desejo e a expectativa se manifestavam em rajadas-relâmpago e espaçadas.
Sexta-feira, 21 de março de 1947, adentrando a praça da Torre Saint-Jacques às 2 para às 3h, sentei-me de frente para a torre, do lado da avenida Victoria.
Fiquei olhando para o topo da torre e só fui capaz de desviar o olhar no momento em que vi sangue.
Então notei um homem vindo em minha direção. No jardim: ninguém. Ele passa. Pára um pouco mais adiante. Volta por onde veio; olha para mim. Olhos estranhamente azuis, úmidos… Meu pescoço se petrifica na região vertebral e minhas têmporas latejam.
Ele senta, fala, como se fosse um conhecido [2].
Sua idade e sua voz: indescritíveis.
Eu estava em pleno maravilhoso.
Atenção, reflexão e lógica me eram desconhecidas [3].
[Entretanto, ao longo da conversa a seguinte frase, de melhor timbre do que as demais: “Não amo. Não posso amar homens nem “mulheres”. (Posteriormente, pensei naqueles diálogos vívidos nos arredores do sono, dos quais às vezes tiramos um retalho).
Estava começando a chover. Ele se levantou. Demos alguns passos juntos e tomamos o metrô enquanto seguíamos falando sobre o tempo, a primavera nascente, a vida em Paris. Na entrada das Tulherias nos separamos.
Rua Saint-X, nº 38, este é o endereço que ele me deu, não sem fazer uma descrição minuciosa das escadarias do imóvel e do cômodo onde ele morava no sexto andar.
(Segundo ele, era uma força misteriosa e irresistível que naquele dia o conduzira em direção à torre Saint-Jacques, pois não saía nunca e eu podia bater à sua porta em qualquer dia ou horário.)
Não muito tempo depois, sob o efeito de um sonho de alerta, decidi ir até o lugar indicado.
Em todos os detalhes, o interior da morada era tal qual ele me dissera mas, tanto pelo nome quanto pela descrição física, ele era totalmente desconhecido da zeladora e dos locatários.
Tudo corroborava para que ele ficasse sendo para mim o desconhecido.
Caro amigo,
Temo que o par de páginas aqui anexo não seja de modo algum aquilo que você espera.
Gostaria que elas tivessem ficado perfeitas, dada a importância que você confere ao assunto.
De todos os aportes de minha imaginação, tentei tirar os fatos tais como se me apresentaram.
Aliás, isso me foi muito custoso e creio que o texto acabou arcando com as consequências.
Até hoje à noite.
Saudações amistosas,
Halpern
Prosseguindo o tríptico aberto com o “Espírito novo”, hoje apresentamos um texto de Jacques Halpern, incluído no anexo “Luz negra” do Arcano 17 de André Breton, que por sua vez afirma que Halpern, “na virada dos anos 1945 – 1950, é um dos mais entusiasmados paladinos do automatismo”.
Nascido em 1925, Jacques Halpern é um pintor bastante desconhecido que foi ligado ao movimento surrealista e, posteriormente, ao movimento Phases. Infelizmente, dispomos de pouquíssimos dados biográficos sobre ele, alguns dos quais graças ao seu encontro com o pintor Luis Chan em 1961 na cidade de Hong Kong, por ocasião de uma exposição de Halpern organizada pela Aliança Francesa. Segundo um artigo dedicado a Chan sabemos que
Este observou uma demonstração de Halpern, que transpunha as cores de uma placa de zinco sobre o papel,
utilizando em sua pintura o poder sugestivo do inconsciente, técnica esta que Chan irá retomar em seguida (…) [4].
Após estabelecer-se em Saigon, no Vietnã, onde teria aberto uma galeria, Halpern faleceu em 1961, ao que tudo indica envenenado. Rumores apontam para um crime perpetrado pelos agentes de Ngô Đình Diệm, então presidente do Vietnã do Sul, o qual teria sido motivado pela simpatia que o pintor francês possuía pelo Vietnã do Norte. O único retrato de Halpern ao qual tivemos acesso revela alguém de cabelos desgrenhados e olhos melancólicos e aventureiros, de modo que a comparação com Paul Gauguin é inevitável.
Curiosamente, ainda que a pintura de Halpern apresente um gesto bastante acentuado, ela lembra aquela, igualmente desconhecida, de Jean-Pierre Duprey [5], pintor-poeta que também teve um fim precoce e trágico e que recentemente tivemos a oportunidade de publicar em tradução na revista Nota do Tradutor [6].
Embora Halpern tenha quase desaparecido nas dobras da história, isso não impede que a gente o traga à tona e lance luz sobre seus rastros traduzindo o texto acima, cuja anotação descobrimos ter sido solicitada por André Breton, como indica a carta que o acompanha. Aliás, a partir deste detalhe é possível inclusive notar uma certa relação discípulo-mestre, sendo importante sublinhar que a provocação e o estímulo são características de qualquer um que é desejante e busca animar as coisas ao seu redor, espicaçando e convidando à atividade e às realizações. E ainda que Halpern envie o que lhe é solicitado cheio de dedos e luvas, é evidente que o resultado supera suas próprias expectativas.
A partir deste segundo momento de nosso tríptico, podemos observar que o que vai sendo descrito aqui lembra os momentos misteriosos que Franz Kafka registrava em seu diário ou a atmosfera evocada pelo magnífico Twin Peaks, de David Lynch, e também algo dos escritos de William S. Burroughs, que apontam para rupturas que poderiam ser sintetizadas em um título de Alain-Robbe Grillet: Djinn: Um furo vermelho entre os paralelepídeos desconjuntados.
Contudo, no que diz respeito a Burroughs, suas perspectivas parecem ser suscitadas por uma visão que interpõe um muro entre o Eu e o mundo. Porém, de acordo com nosso ponto de vista, esse muro não existe e, ainda que exista, é no mínimo poroso. Portanto, ao invés de localizar a fresta somente na realidade, preferimos situá-la também no próprio Eu que, como afirma Sigmund Freud, se apresenta cindido ou “gespalten”.
O que passa por esta fresta é de difícil apreensão, pois sempre surge revestido de representações deslocadas e distorções impostas pela censura. Isso nos faz recordar que o inconsciente é cognoscível enquanto fenômeno a partir de sua materialização em atos falhos, sonhos e outras formações que permitem a travessia. Ao serem vencidas as barreiras, eis o terror e o pesadelo ou o frisson e o sentimento inefável do maravilhoso. Talvez seja justamente este aspecto o responsável por levar os autores que compõem este tríptico a optar pela sobriedade e objetividade de seus respectivos relatos, renunciando a uma tentativa de restituição, digamos, lírica. Uma vez que, enquanto não for realizado aquilo de que fala Mabille, ou seja, enquanto não for fundada uma “poesia nova”, capaz prescindir de imagens vetustas e de um sentimentalismo requentado e piegas, o lirismo costuma não contribuir com a grande aventura e tendo a só lançar água no caudal de uma afetação que mais afasta do que aproxima e mais cospe enquanto gagueja do que acaricia com tesão.
Antes de concluir, tenho de dizer que foi só depois de anotar a primeira versão deste comentário que descobri que o texto de Halpern é citado por Breton em “Luz negra”, incluído como apêndice no Arcano 17. Li este livro de Breton no ano passado, depois de muito tempo esperando pelo momento “certo”, momento que, na verdade, parece não existir e consistir apenas no sucessivo adiamento de um prazer até torná-lo inexistente ou impossível, com isso transformando certos objetos em sagrados e intocáveis, porém destituídos do aspecto mágico.
Enfim, depois de muito hesitar, como vinha dizendo finalmente li o Arcano 17. Mas por que então a pressa em devolvê-lo à prateleira, sem passar justamente pelas “Frestas” que se seguem ao texto principal e onde se encontra “Luz negra” e a menção a Halpern, que meses depois viria a encontrar perambulando pelos arquivos de Breton? É como se, apesar da tentativa de evitar algo que sequer sabia estar me procurando, inelutavelmente fosse levado até lá por caminhos ocultos.
Tampouco parece ser fortuito o fato de ter concluído este comentário ao pôr-do-sol, em um momento de respiro depois de dias de grande aflição.
NOTAS
[1] Na versão publicada em Arcano 17, Breton acrescenta “ele mora no começo do bulevar Sébastopol”;
[2] Em francês “me tutoie”, isto é, utiliza a segunda pessoa, o que indica informalidade no tratamento.
[3] O trecho a seguir entre colchetes não consta nos manuscritos de Halpern disponíveis nos arquivos de André Breton aos quais tivemos acesso. No entanto, se encontra no apêndice ao Arcano 17, de modo que podemos presumir que uma página da carta de Halpern não se encontra nos arquivos consultados.
[4] Disponível em: < https://lepetitjournal.com/luis-chan-peint-un-hong-kong-visionnaire-et-fantaisiste-211240 >; acesso em 20 de junho de 2023.
[5] Compare-se, por exemplo, “A possibilidade do cristal”, de maio de 1953 (disponível em: < https://drouot.com/en/l/18241143-jeanpierre-dupreyle-possible-d >; acesso em 11 de julho de 2023) de Duprey e o par de pinturas sem título, datadas de 1947, de Halpern disponíveis nos arquivos de André Breton (disponível em: < https://www.andrebreton.fr/fr/work/56600100438450 >; acesso em 11 de julho de 2023).[6] Disponível em: < https://www.notadotradutor.com/previas/(n.t.)_Jean_Pierre_Duprey.html > ; acesso em 16 de junho de 2023.
Fotografia: Posto telegráfico do “Cadeado” – Arthur Wischral (Acervo Instituto Moreira Salles).